domingo, 27 de setembro de 2020

Novo Artigo: A Educação para a Morte em Herculano Pires


Por Lindemberg Castro - Coordenador do Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires
lindembergsousac@gmail.com


A EDUCAÇÃO PARA A MORTE EM HERCULANO PIRES

Em “Educação para a Morte”, cuja primeira edição data do ano de 1978, o filósofo Herculano Pires amplia a sua reflexão existencialista, já conhecida em sua obra filosófica, demarcando o ponto crucial, quer seja da existência, quer seja da essência, quer seja da própria destinação do ser humano: todos somos Espíritos.  Quando falamos em essência do ser humano, não estamos nos utilizando, e nem Herculano o fez, de aspectos da metafísica essencialista, mas sim, ressaltando a condição existencial da humanidade, independente de estar na erraticidade ou no mundo material.

Se para Sartre “a existência precede a essência”, e partir de Herculano Pires compreendemos que “a essência precede a existência”, em outras palavras, a existência atual é apenas mais uma dentre o conjunto de experiências acumuladas pelo Espírito, que, ao reencarnar, não o faz como uma tábula rasa. É precisamente a sua condição existencial como Espírito, que permite ao ser humano exercitar a sua interexistência quando está reencarnado, mantendo relações diretas ou indiretas com outros encarnados e com Espíritos errantes. O conceito de interexistente é apresentado por Herculano para representar o ser humano no intermúndio que a sua condição espiritual lhe garante.

 

O interexistente não é apenas intuição, nem apenas hipótese, ou formulação teórica. Pelo contrário, o interexistente é uma realidade histórica, antropológica, que podemos encontrar em todos os tempos e lugares. Foram interexistente os videntes e profetas de todas as épocas, os xamãs e pagés das tribos, os oráculos, as pitonisas, os taumaturgos de todas as religiões. São interexistentes os médiuns e os paranormais de hoje, os gênios de todas épocas, os fundadores e propagadores de religiões. A História da Filosofia oferece-nos as figuras de Sócrates, Platão, Plotino, Descartes e Bergson como interexistentes. Na História da Psicologia temos o caso recente de Karl Jung. (...) O conceito espírita de interexistente se comprova na realidade histórica e na realidade cotidiana das nossas próprias existências, quando não em nós mesmos.” (PIRES, 1993, p. 73-74)

 O corpo não é uma instância ontológica na Filosofia Espírita, mas sim uma instância existencial, passageira e corriqueira, já que nascemos e morremos há milhares de anos. Desde Plotino a problemática do corpo que é capaz de ludibriar a alma, está posta novamente na obra de Herculano Pires, ao investigar, em “Educação para a Morte”, o papel das ideias ilusórias, materialistas e religiosas, para a determinação de todo um temor da morte causado pela incompreensão de que ela não é senão um momento fugidio para o Espírito.

A morte, nada mais é do que o término de uma experiência material e o retorno à vida livre do Espírito; o conhecimento do Espiritismo poderia, segundo vemos em “O Livro dos Espíritos”, ter um importante papel para auxiliar o ser humano em seu momento derradeiro da existência material, contudo, o materialismo crescente, os apegos, os sentimentos anti-fraternos, os rancores, os ódios, os discursos separatistas, etc., todos eles colaboram para que vida e morte sejam pouco compreendidas em suas funções e em sua dialética. Sim, o Espírito vive em um constante devir entre nascer e morrer na matéria densa e figurativamente também renasce e morre no mundo espiritual; essa é a dialética do progresso espiritual a que somos chamados a vivenciar.

Mas a educação para a morte, em Herculano Pires, não passa apenas pela compreensão da vida e da morte em si mesmas; Herculano inaugura em suas obras o que podemos chamar de tanatologia filosófica, a partir da qual não apenas os fenômenos que ocorrem na morte são importantes, mas também, e principalmente, a forma como conduzimos a nossa vida. Esse é a metodologia que vemos em “O Céu e o Inferno”, de Kardec, em que todos os processos de morte são analisados a partir da vida encarnada dos Espíritos entrevistados; durante a morte e depois dela, cada fenômeno que repercute no perispírito, na condição moral do Espírito e na percepção de si mesmo e do meio que o rodeia, estão intimamente ligados ao tipo de vida que levaram na última encarnação. Dessa forma, Herculano insere a sua obra nas Filosofias Existencialistas, mas acrescenta-lhes o aspecto espiritual e a reflexão para além da angústia, da náusea, da repetição e da escolha sartreana. Aliás, o que seria a própria reencarnação senão um processo de repetição-criação (para usarmos um termo do filósofo argentino Alejandro Cerletti - 2009), em que o Espírito repete o processo de reencarnar para criar as possibilidades de desenvolvimento de seus potenciais? Como analogia, podemos comparar também com a concepção aristotélica do ato e da potência, é na existência material que o Espírito atualiza as suas potências espirituais, transformando-as em conquistas suas.

Herculano nos diz, em “Educação para a Morte”, que Kardec foi o primeiro que cuidou da “Psicologia da Morte e da Educação para a Morte”, realizando uma pesquisa psicológica exemplar sobre os fenômenos que compõem a morte, nem tratando a morte como questão meramente material, e nem tratando-a no âmbito da tradição judaico-cristã que impunha à morte perspectivas de culpa, de medo, de ameaça e de condenação eterna. Dentre outras metodologias desenvolvidas por Allan Kardec, foi exatamente essa postura frente à doutrina nascente, que fez com que ele evitasse que o Espiritismo continuasse a tradição do Espiritualismo Utópico e metafísico, e avançasse para um Espiritualismo Científico e ontológico, como bem aponta Herculano.

Educar para a morte não é uma disciplina, ou um curso específico, é antes uma reflexão sobre a própria existência humana lançada na vida material, vida breve, que intercalará com a morte o processo do devir do Espírito; a educação para a morte, no sentido como propôs Herculano Pires, ressignifica todas as questões da existência reencarnada: perspectivas de vida, percepção sobre si mesmo e sobre os outros, intervenção no mundo, relação com sua espiritualidade ou religiosidade, relações de apego e desapego, e claro, também modifica as pulsões de morte, como nos diz Herculano (2016):

 

“Conhecendo o mecanismo da vida, em que nascimento e morte se revezam incessantemente, os instintos de morte e seus impulsos criminosos irão se atenuando até desaparecerem por completo. Os desejos malsãos de extinção da vida, que originam os suicídios, os assassinatos e as guerras, tenderão a se transformar nos instintos da vida. A esperança e a confiança em Deus, bem como a confiança na vida e nas leis naturais, criarão um novo clima no planeta, hoje devastado pelo desespero humano. O medo e o desespero desaparecerão com o esclarecimento racional e científico do mistério da morte.” (p. 40).


Em tempos difíceis como os que estamos vivendo atualmente, Herculano continua sendo uma voz progressista a nos alertar para as pulsões de morte, de destruição e de anti-humanidade a que estamos expostos e muitas vezes até reproduzindo; discursos de ódio de alastram com a velocidade do pensamento, a necropolítica passou a ser praticada de forma aberta, sob o amparo da legalidade e da aquiescência de parte das populações, a vida parece que esvaziou-se de sentido como uma terrível sequela da invigilância e da normose do ser humano em meio a uma nova pandemia. Mas antes do Coronavírus já vivíamos outra pandemia, silenciosa, colocada à margem dos tabus e do julgamento moralizante: a pandemia de suicídio. E a epidemia de depressão?! Também esta relegada ao plano do julgamento e da incompreensão, em uma visão capacitista e de eugenia.

Herculano vai no sentido oposto da “educação para a morte” nazifascista, que ensinava para todas as gerações de seu tempo, que a vida humana não possuía valor em si mesma, a não ser a partir da sua suposta pureza racial; o nazismo concentrou boa parte das pulsões de morte no século XX, tendo evocado o que havia de pior no inconsciente coletivo da violência e do ódio, já presentes em diversos momentos da história sangrenta da Humanidade. Herculano evocou para nós, em “Educação para a Morte”, a frase de Theodor Adorno: “a educação deve ter como princípio evitar que Auschwitz se repita”, incluindo o Espírito como o grande catalisador da construção de valores civilizatórios.

Herculano, mais do que nunca precisamos de você, nosso querido amigo-filósofo; suas ideias em prol de uma Filosofia Espírita não contemplativa continuam a reverberar em nossas mentes e em nossos corações. Neste seu 106º aniversário de nascimento (25/09/1914), saudamos a sua obra, o seu exemplo de pesquisador e de pensador, mas também agradecemos pela oportunidade de pensarmos no Espiritismo enquanto filosofia social, assertiva, capaz não apenas de transformar a nós mesmos, como também transformar a realidade social. Sua missão filosófica foi a da educação do Espírito, da educação para a morte para que o Espírito saia vencedor da luta contra a matéria e o materialismo dos sentimentos. Gratidão, querido amigo e mentor!

REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS

ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. Disponível em: https://rizomas.net/arquivos/Adorno-Educacao-apos-Auschwitz.pdf. Acessado em 26/09/2020.

CERLETTI, Alejandro. O ensino de filosofia como problema filosófico. Tradução de Ingrid Muller Xavier. Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de José Herculano Pires. Catanduva: EDICEL, 2016.

KARDEC, Allan. O Céu e o Inferno. Tradução de José Herculano Pires. 10ª ed. São Paulo: LAKE, 2002.

PIRES, José Herculano. Introdução à Filosofia Espírita. 2ª ed. São Paulo: FEESP, 1993.

PIRES, José Herculano. Educação para a Morte. 1ª ed. São Bernardo do Campo: Correio Fraterno, 2016.


 

2 comentários:

  1. Belíssimo trabalho e homenagem !!! Que possamos compreender o significado de viver, nós preparando para o que vêm depois.

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    1. Gratidão, meu amigo! Toda homenagem ao nosso mestre Herculano é singela. Que possamos nos reconhecer como Espíritos que somos, para que possamos tratar de forma mais natural os fenômenos da existência.

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