domingo, 4 de abril de 2021

Poema "Vida e Morte", de Herculano Pires - pelo artista Luciano Mendes

 



A pedido do Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires - IFEHP, o artista, compositor, cantor, escritor Luciano Mendes, aqui de Fortaleza, gravou um vídeo com o poema "Vida e Morte", do nosso saudoso Herculano Pires, agora musicado pela voz do nosso talentoso Luciano, a quem muito agradecemos pela inspiração de musicalizar o poema, e por gravar este vídeo em nosso pedido.

O poema "Vida e Morte", um dos mais belos escritos por Herculano, foi incorporado às edições mais recentes do livro "Educação para a Morte", figurando antes do capítulo 1. Esse livro, por sinal, é um dos mais profundos de Herculano Pires, refletindo a sua filosofia espírita e existencialista, vale a pena a leitura.

Segue abaixo o vídeo do nosso artista Luciano Mendes:




sábado, 3 de abril de 2021

Da hiperatividade social ao cansaço depressivo - por Marcio Sales Saraiva


DA HIPERATIVIDADE SOCIAL AO CANSAÇO DEPRESSIVO

por Marcio Sales Saraiva, escritor, sociólogo e cientista político 

A leitura do livro “Sociedade do cansaço” (2ª edição ampliada – Petrópolis, RJ: Vozes, 2019) do filósofo Byung-Chul Han (tradução de Enio Paulo Giachini) trouxe-me muitos insights sobre este tempo histórico que estamos vivendo. Eu fiz algumas anotações breves e destaquei algumas passagens que me marcaram muito. É isso que compartilho com você. Não é uma resenha, são apenas fragmentos sobre a doença que se tornou nosso mundo, nós mesmos.

Antes de começar, saiba que Byung-Chul Han nasceu na Coreia do Sul, mas fixou-se na Alemanha, onde estudou Filosofia na Universidade de Friburgo e Literatura Alemã e Teologia na Universidade de Munique. Em 1994, doutorou-se em Friburgo com uma tese sobre Martin Heidegger. É professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade de Berlim. Ok, o cara estudou bastante, mas vamos ao que ele está pensando sobre a vida.

“A sociedade disciplinar de Foucault, feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo, entrou uma outra sociedade, a saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos, aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de desempenho e produção. São empresários de si mesmos.”

“Alain Ehrenberg localiza a depressão na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho: ‘A carreira da depressão começa no instante em que o modelo disciplinar de controle comportamental, que, autoritária e proibitivamente, estabeleceu seu papel às classes sociais e aos dois gêneros, foi abolido em favor de uma norma que incita cada um à iniciativa pessoal: em que cada um se comprometa a tornar-se ele mesmo. [...] O depressivo não está cheio, no limite, mas está esgotado pelo esforço de ter de ser ele mesmo’”.

“O que causa a depressão do esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão de desempenho. Vista a partir daqui, a Síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo esgotado, mas antes a alma consumida. Segundo Ehrenberg, a depressão se expande ali onde os mandatos e as proibições da sociedade disciplinar dão lugar à responsabilidade própria e à iniciativa. O que torna doente, na realidade, não é o excesso de responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como um novo mandato da sociedade pós-moderna do trabalho.”

“(...) o sujeito de desempenho se entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. O excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o sentimento de liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor e vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autorreferencialidade gera uma liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são inerentes, se transforma em violência. Os adoecimentos psíquicos da sociedade de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade paradoxal.”

“Essa atenção dispersa (hyperattention) se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas atividades, fontes informativas e processos. E visto que ele tem uma tolerância bem pequena para o tédio, também não admite aquele tédio profundo que não deixa de ser importante para um processo criativo. Walter Benjamin chama a esse tédio profundo de um “pássaro onírico, que choca o ovo da experiência”. Se o sono perfaz o ponto alto do descanso físico, o tédio profundo constitui o ponto alto do descanso espiritual. Pura inquietação não gera nada de novo. Reproduz e acelera o já existente. Benjamin lamenta que esse ninho de descanso e de repouso do pássaro onírico está desaparecendo cada vez mais na modernidade.”

A barbárie da hiperatividade no capitalismo pós-moderno...

“Mas a arte é uma ‘ação expressiva’. O próprio Nietzsche, que substituiu o ser pela vontade, sabe que a vida humana finda numa hiperatividade mortal se dela for expulso todo elemento contemplativo: ‘Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo’”.

“Precisamente frente à vida desnuda, que acabou se tornando radicalmente transitória, reagimos com hiperatividade, com a histeria do trabalho e da produção. Também o aceleramento de hoje tem muito a ver com a carência de ser. A sociedade do trabalho e a sociedade do desempenho não são uma sociedade livre. Elas geram novas coerções. A dialética de senhor e escravo está, não em última instância, para aquela sociedade na qual cada um é livre e que seria capaz também de ter tempo livre para o lazer. Leva ao contrário a uma sociedade do trabalho, na qual o próprio senhor se transformou num escravo do trabalho. Nessa sociedade coercitiva, cada um carrega consigo seu campo de trabalho. A especificidade desse campo de trabalho é que somos ao mesmo tempo prisioneiro e vigia, vítima e agressor. Assim, acabamos explorando a nós mesmos. Com isso, a exploração é possível mesmo sem senhorio.”

Esta aceleração, a hiperatividade, é fruto da coerção do sistema sociocultural e político vivido na sociedade do desempenho. Ser livre, nesse contexto, significa dizer não a essa maquinaria do agir. É através da negatividade que podemos colocar algum freio à ordem do capital e seu paradigma de desempenho/cansaço.

“Hoje, vivemos num mundo muito pobre de interrupções, pobre de entremeios e tempos intermédios. No aforismo ‘A principal carência do homem ativo’, escreve Nietzsche: ‘Aos ativos falta usualmente a atividade superior [...] e nesse sentido eles são preguiçosos. [...] Os ativos rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecânica’”.

A ira/indignação — se preferir, a revolução social — exige freio, tempo, crítica, mudança...

“A ira (...) coloca definitivamente em questão o presente. Ela pressupõe uma pausa interruptora no presente. É nisso que ela se distingue da irritação. A dispersão geral que marca a sociedade de hoje não permite que surja a ênfase e a energia da ira. A ira é uma capacidade que está em condições de interromper um estado, e fazer com que se inicie um novo estado. Hoje, cada vez mais ela cede lugar à irritação ou ao enervar-se, que não podem produzir nenhuma mudança decisiva.”

“A negatividade do não-para é também um traço essencial da contemplação. Na meditação zen, por exemplo, tenta-se alcançar a negatividade pura do não-para, isto é, o vazio, libertando-se de tudo que aflui e se impõe. Assim é um processo extremamente ativo, e algo bem distinto que passividade. É um exercício para alcançar em si um ponto de soberania, de ser centro.”

O zen é estruturalmente anticapitalista?

“A coação de desempenho força-o a produzir cada vez mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso da gratificação. Vive constantemente num sentimento de carência e de culpa. E visto que, em última instância, está concorrendo consigo mesmo, procura superar a si mesmo até sucumbir. Sofre um colapso psíquico, que se chama de burnout (esgotamento). O sujeito do desempenho se realiza na morte. Realizar-se e autodestruir-se, aqui, coincidem.”

“O responsável pela depressão, na qual acaba desembocando o burnout, é antes de mais nada a autorrelação sobre-exaltada, sobremodulada, narcisista, que acaba adotando traços depressivos. O sujeito de desempenho esgotado, depressivo está, de certo modo, desgastado consigo mesmo. Está cansado, esgotado de si mesmo, de lutar consigo mesmo. Totalmente incapaz de sair de si, estar lá fora, de confiar no outro, no mundo, fica se remoendo, o que paradoxalmente acaba levando a autoerosão e ao esvaziamento. Desgasta-se correndo numa roda de hamster que gira cada vez mais rápida ao redor de si mesma.”

Pior do que uma sociedade onde os indivíduos líquidos e desatrelados dos laços sociais de grupo/classe concorrem entre si é uma sociedade do desempenho onde os indivíduos concorrem consigo mesmo ou contra si, cindidos.

“Problemática não é a concorrência entre os indivíduos, mas o fato de tomarem a si mesmos como referência e de aguçar neles, assim, sua concorrência absoluta. O sujeito de desempenho concorre consigo mesmo e, sob uma coação destrutiva, se vê forçado a superar constantemente a si próprio. Essa autocoação, que se apresenta como liberdade, acaba sendo fatal para ele. O burnout é o resultado da concorrência absoluta.”

“É assim que doenças psíquicas como o burnout ou a depressão, que são as enfermidades centrais do século XXI, apresentam todas elas um traço altamente agressivo a si mesmo. A gente faz violência a si mesmo e explora a si mesmo. Em lugar da violência causada por um fator externo, entra a violência autogerada, que é mais fatal do que aquela, pois a vítima dessa violência imagina ser alguém livre.”

O capitalismo de desempenho coloca a sobrevivência como meta, abolindo a ideia aristotélica de boa vida. O fundamental não é viver ou bem viver, mas sobreviver no interior do sistema e, sorrindo, pois ninguém suporta tristezas.

“A economia capitalista absolutiza a sobrevivência. Ela se nutre da ilusão de que mais capital gera mais vida, que gera mais capacidade para viver. A divisão rígida, rigorosa entre vida e morte marca a própria vida com uma rigidez assustadora. A preocupação por uma boa vida dá lugar à histeria pela sobrevivência. A redução da vida a processos biológicos, vitais, deixa a vida desnuda, despe-a de toda narratividade. Retira à vida a vivacidade, que a vida é algo muito mais complexo que mera vitalidade e saúde. A mania da busca por saúde surge sempre que a vida se tornou desnuda, como uma cédula de dinheiro, e quando todo conteúdo narrativo se esvaziou.”

A mudança desse modelo de sociedade passa pela festa, pela celebração, pelo tempo contra o totalitarismo do trabalho e do desempenho.

“Talvez devêssemos reconquistar aquela divindade, aquela festividade divina, em vez de continuarmos sendo escravos do trabalho e do desempenho. Deveríamos reconhecer que hoje perdemos aquela festividade, aquele tempo de celebração na medida em que absolutizamos trabalho, desempenho e produção. O tempo de trabalho que hoje está se universalizando destrói aquela época celebrativa como tempo de festa.”

“Hoje em dia o tempo de celebração desapareceu totalmente em prol do tempo do trabalho, que acabou se tornando totalitário. A própria pausa se conserva implícita no tempo de trabalho. Ela serve apenas para nos recuperar do trabalho, para poder continuar funcionando.”

“Na época do relógio de ponto era possível estabelecer uma clara separação entre trabalho e não trabalho. Hoje edifícios de trabalho e salas de estar estão todos misturados. Com isso torna-se possível haver trabalho em qualquer lugar e a qualquer hora. Laptop e smartphone formam um campo de trabalho móvel.”

“A sociedade atual do sobreviver que absolutiza o sadio, destrói precisamente o belo. A mera vida sadia, que hoje adota a forma do sobreviver histérico, converte-se no morto; sim, num morto-vivo. Nós nos transformamos em zumbis saudáveis e fitness, zumbis do desempenho e do botox. Assim hoje, estamos por demais mortos para viver, e por demais vivos para morrer.”

Não existe política se não há tempo, criatividade, alternativas, capacidade de construir coisas diferentes. É preciso espaço de criação para que o agir político se faça significativo e não mera administração de dados estatísticos na perspectiva de um eterno e linear processo de crescimento e expansão.

“A salvação do belo é igualmente o resgate do político. Hoje parece que a política vive ainda apenas de decretos de urgência. Já não é livre. Isto quer dizer: Hoje já não há política. Se ela já não admite nenhuma alternativa, acaba se aproximando de uma ditadura, da ditadura do capital. Os políticos, que hoje se degradaram em capangas do sistema, que no melhor dos casos são hábeis administradores da economia doméstica ou contadores, não são mais políticos no sentido aristotélico.”

Este não é um livro necessário?

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O Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires agradece ao escritor Marcio Sales Saraiva, pela autorização de veicularmos o seu texto em nosso site, um texto que elenca reflexões fundamentais para o nosso tempo, e que vem ao encontro dos estudos desenvolvidos pelo IFEHP em torno da obra de Byung-Chul Han, incluindo um minicurso que iremos ministrar sobre aproximações do seu pensamento com o de Herculano Pires, no mês de maio.