sábado, 21 de novembro de 2020

Pequeno Manual Antirracista para Espíritas - Por Lindemberg Castro


Artigo: "Pequeno Manual Antirracista para Espíritas"
Por Lindemberg Castro - Coordenador do IFEHP


O que nos inspirou a produzir as reflexões elencadas aqui, além da alusão ao mês da Consciência Negra, e todas as situações deploráveis que temos visto nos últimos dias, de racismo declarado, como os discursos absurdos do presidente e do vice-presidente do Brasil, e o revoltante espancamento até a morte do homem negro João Alberto Silveira Freitas, em pleno Dia da Consciência Negra, também nos inspirou o livro “Pequeno Manual Antirracista”, da filósofa brasileira Djamila Ribeiro. Pensando em tudo o que a referida filósofa nos diz em sua obra, e contextualizando com o movimento espírita no Brasil, vemos que o racismo, assim como as diversas questões sociais, é amplamente invisibilizado, como se as casas espíritas não estivessem inseridas em um mundo físico cheio de desigualdades, e como se nós Espíritos não estivéssemos reencarnados em um tempo histórico e social que reflete os preconceitos de sua época. Invisibilizar as diversidades, sejam elas subjetivas ou sociais é a práxis recorrente do movimento espírita, marcado pelo Igrejismo, como bem denuncia Herculano Pires (2005) em “A Pedra e o Joio” e pela reforma íntima individualista e alienada das realidades sociais.

Em pleno 2020 ainda é possível ver palestrantes de grande vulto dentro do movimento espírita, com discursos que invisibilizam as diversidades, sempre apelando para ideias como “somos todos iguais”, “precisamos de uma consciência humana e não de uma consciência negra”, etc. O que os diletos palestrantes ignoram é que enquanto ainda vivermos em um mundo de provas e expiações e cheio de desigualdades sociais causadas por nós mesmos, conforme vemos em O Livro dos Espíritos, a nossa consciência (no sentido de percepção das realidades e de nós mesmos na encarnação), ainda precisa ter cor, gênero, orientação sexual, etnia, cultura e classe. Sem essas perspectivas, viveremos apenas reencarnações contemplativas em que a práxis será ascética e individual em prol de si mesmo. Alienar-se da vida na matéria em favor de promessas de uma vida na colônia espiritual, transformou algumas práticas espíritas em verdadeira venda de indulgências com base na chamada reforma íntima, na qual a mansidão é mais importante do que transformar o mundo em um lugar mais acolhedor para as próximas gerações; a mansidão tornou-se mais importante do que o amor, infelizmente.

O que dizer, por exemplo, de uma postagem da FEB – Federação Espírita Brasileira, nas redes sociais, recheada de comentários racistas por parte de alguns espíritas?! A FEB, apesar de diversos problemas institucionais merecedores de crítica pelo movimento espírita, fez bem em aderir à campanha do Dia da Consciência Negra, postando um conteúdo em alusão a essa luta; não demorou para espíritas bolsonaristas e conservadores de toda sorte comentarem a postagem de forma agressiva, anti-fraterna e com o racismo mais odiosamente declarado que poucas vezes teremos a oportunidade de ver, principalmente porque no Brasil o racismo é cínico, que não raro usa o disfarce recreativo, para utilizar um termo de Silvio Almeida (2018) do seu livro “O que é Racismo Estrutural?”, para se projetar nos discursos e práticas.

Seguindo os passos de Djamila Ribeiro, em relação à sua obra já mencionada acima, nomearemos algumas seções do nosso artigo de acordo com o livro da filósofa, procurando, no entanto, tecer reflexões para o movimento espírita, em diálogo com autores espíritas e não espíritas.

1. Informe-se sobre o Racismo

Compreender as dinâmicas do racismo estrutural é fundamental para repensarmos as práticas e os discursos que colaboram com os sistemas racistas, conforme nos aponta Silvio Almeida (2018). Angela Davis (2016), filósofa estadunidense, nos aponta em “Mulheres, Raça e Classe”, que na base dos sistemas de opressão que regem o mundo, o Racismo forma um tripé junto com o Capitalismo e o Machismo, portanto, é crucial entender que a interseccionalidade entre eles forma as opressões estruturais de difícil manejo e transformação, mas que exige de todos nós o compromisso de não apenas nos dizermos não-racistas, mas de desenvolvermos práticas efetivamente antirracistas, como bem aponta Angela Davis. O desafio de desenvolvermos práticas antirracistas também convida os espíritas, progressistas ou não, a se engajarem nessa luta.

Kabengele Munanga, professor na Universidade de São Paulo, denuncia que duas das marcas do racismo brasileiro é o silêncio e a negação; um país acostumado a não pautar como deveria as suas questões sociais, invisibiliza a sua própria história para criar um mito de igualdade racial que nunca existiu em terras tupiniquins, cuja vocação para a pátria do evangelho ainda está longe de ser confirmada. A invisibilização e a negação a que o Brasil se acostumou frente ao seu passado e o seu presente, atualmente atinge esferas de mentiras conceituais forjadas por líderes de governo, para escamotear ou difamar questões sociais importantes, do racismo aos discursos de ódio, da lgbtfobia ao discurso anticiência, da minimização de uma pandemia ao ataque à educação pública. Tudo isso atordoa uma população marcada pela desigualdade e pela desinformação.

Devemos aprender com a História, a Filosofia, a Sociologia, a Geografia, a Antropologia, em fim, com as ciências humanas e sociais que nos trazem dados sobre a nossa própria história, ao mesmo tempo em que propõem mudanças de práticas e discursos. Devemos aprender com os grupos sociais diversos, que há décadas lutam por direitos civis e sociais para setores da sociedade historicamente excluídos, como a população negra. Devemos aprender com o Movimento Negro no Brasil, sua atuação, sua luta, suas conquistas que estão sempre ameaçadas pelos poderes hegemônicos.

Devemos aprender com o Feminismo Negro, que traça questões específicas e fundamentais sobre a mulher negra, pois incide sobre ela a opressão de raça e classe, acrescida da opressão de gênero. Em discurso na Universidade Federal da Bahia, quando da sua vinda ao Brasil em 2017, Angela Davis nos disse que: “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”; a sua afirmação tem por entendimento que a mulher negra, dentro do sistema racista de opressão sofre ainda mais, mas que, ao movimentar-se na luta, força a estrutura social a sair do lugar comum.

Estudemos autores negros para conhecer a percepção e as pesquisas que eles desenvolvem sobre os mais variados temas, incluindo o racismo. Além de Djamila Riberio, Kabengele Munanga, Silvio Almeida e Angela Davis, que já citamos acima, temos ainda pensadores negros incríveis para a nossa pesquisa: Achille Mbembe, Karla Akotirene, Lelia Gonzalez, bell hooks, Chimamanda Ngozi Adichie, Frantz Fanon, Sueli Carneiro, Milton Santos, Paulina Chiziane, Audre Lorde, Sophie Oluwole, Joice Berth, Grada Kilomba, entre outros. No final do seu livro “Pequeno Manual Antirracista”, Djamila elenca dezenas de pensadores negros para a nossa cultura, sugerimos ao leitor que possa ler essa obra da nossa filósofa brasileira.

E sobre o que nós espíritas, em particular, que estamos inseridos em uma doutrina progressista como o é o Espiritismo, estamos fazendo pela luta antirracista?! O que nós, enquanto cidadãos, estamos fazendo contra o sistema de opressão racista?! Sobre essas questões, Djamila (2019) nos diz que:

 

Chegamos, assim, à seguinte pergunta: o que, de fato, cada um de nós tem feito e pode fazer pela luta antirracista? O autoquestionamento — fazer perguntas, entender seu lugar e duvidar do que parece “natural” — é a primeira medida para evitar reproduzir esse tipo de violência, que privilegia uns e oprime outros. Simone de Beauvoir, em referência a Stendhal, autor que segundo a filósofa atribuía humanidade às suas personagens femininas, dizia que um homem que enxergasse a mulher como sujeito e tivesse uma relação de alteridade para com ela poderia ser considerado feminista. Esse mesmo raciocínio pode ser usado para pensar o antirracismo, com a ressalva de que sobre a mulher negra incide a opressão de classe, de gênero e de raça, tornando o processo ainda mais complexo (p. 11).

 

 2. Enxergue a negritude

A negritude, nas práticas sociais mais comuns, é relegada a um lugar social subalterno, submisso, de modo que o tratamento para brancos e negros é diferenciado desde a infância, nas práticas escolares, até a vida adulta. Os currículos ainda são permeados pela superioridade da cultura européia, bem como os valores e estéticas europeus. Joice Berth (2018), afirma que “não me descobri negra, fui acusada de sê-la”; isso porque, na análise de Djamila, o negro possui um não-lugar social por ser apenas o contrário do branco e não o seu igual; a mesma alusão encontramos também em Simone de Beauvoir ao falar que para o machismo, a mulher não é um ser, é apenas um não-ser contrário ao homem, portanto, não possui identidade social própria. Esse é um belo exemplo de como os sistemas de opressão repetem estratégias de dominação, quer seja na questão de raça, quer seja na questão de gênero.

O apagamento das expressões e da cultura negra também ocorre em variados setores: produção de conhecimentos, artes, estética, mídia e comunicação, etc. Portanto, uma ação prática é tirarmos da invisibilidade essas questões e essas produções, para atuarmos contra esses apagamentos. Grada Kilomba nos diz que o racismo é uma problemática branca, pois em um dado momento histórico foram os brancos que diferenciaram os negros, não os considerando como seres humanos, mas como mercadorias; a escravização foi o primeiro processo de fetichização em larga escala, direcionada a uma parcela da população mundial: os negros. Apesar de ser uma problemática criada pelos brancos, são os negros que pautam a luta antirracista, desde que sua cultura, suas etnias, seus idiomas e seus costumes foram tomados de assalto a partir da Colonização européia.  

Sobre tirarmos essas temáticas da invisibilidade, Djamila (2019) nos diz:

 

É importante ter em mente que para pensar soluções para uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade. Portanto, frases como “eu não vejo cor” não ajudam. O problema não é a cor, mas seu uso como justificativa para segregar e oprimir. Vejam cores, somos diversos e não há nada de errado nisso — se vivemos relações raciais, é preciso falar sobre negritude e também sobre branquitude (p. 15, 2019).

 

Nós espíritas, para colaborarmos com o processo de retirar da invisibilidade a questão da luta antirracista, precisamos estudar mais a respeito, e produzirmos: textos, cursos, seminários, artigos, livros, etc., pautando esses temas. Precisamos entender que vivemos no mundo material e precisamos lidar com a questões sociais e históricas do nosso tempo. Alguns espíritas se utilizam de argumentos como “ah, mas somos todos iguais perante Deus”, ou “somos todos Espíritos”; as duas sentenças estão corretas em seu sentido essencial, mas não criam contextos com os processos reencarnatórios. É na reencarnação que travamos as mais árduas batalhas morais e existenciais, e além das nossas questões individuais para darmos conta, é no mundo material que enfrentamos as injustiças e desigualdades, o preconceito, os processos anticivilizatórios, e toda sorte de mazelas que, cabe a nós construirmos práticas e discursos que transformem para melhor este mundo. Nenhum conceito espírita serve para secar o nosso coração às dores dos outros, e nem para cruzar os nossos braços frente às desigualdades sociais. A práxis máxima do Espiritismo é o amor, sentimento que precisa ser transformado em ação de amparo, de empatia e de acolhimento a quem sofre.

O nosso papel frente à transformação do mundo, e não apenas de nós mesmos, está explicitado nesta fala de Allan Kardec (2001) em “A Gênese”, sobre as questões sociais:

 

Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade (p. 25).

 

3. Sejamos todos antirracistas

Djamila Ribeiro nos diz, no último capítulo do seu livro com o qual estamos trabalhando nesse artigo, que o racismo, apesar de ser estrutural, possui uma capacidade ampla de passar despercebido; isso acontece porque os sistemas de opressão que atuam no mundo foram demarcados como naturais e essenciais à condição humana, sendo assim, além do racismo, nós também podemos perceber o machismo e o capitalismo como estruturais, ao ponto de uma enorme parcela da população considerar difícil que pudéssemos ter outros valores e outras formas de viver na reencarnação.

Não é fácil, sobretudo em um país como o Brasil, percebermos os privilégios que determinados grupos sociais possuem, em detrimento de uma população que em sua maioria é historicamente explorada por toda sorte de opressões. No Brasil, não é difícil de encontrarmos pessoas, por exemplo, que se incomodam profundamente com o auxílio emergencial para a população em meio a uma Pandemia, mas que já internalizaram a naturalidade dos privilégios da classe política e dos poderes que governam o país; isso só para dar um exemplo da dificuldade que temos de perceber como as desigualdades sociais são construídas e justificadas.

“Pessoas brancas devem se responsabilizar criticamente pelo sistema de opressão que as privilegia historicamente”, nos diz Djamila, e nós acrescentamos ainda que: os espíritas devem se responsabilizar em pensar sobre o mundo e sobre as realidades sociais de forma crítica, percebendo e denunciando os sistemas de opressão vigentes, e atuando, tanto quanto puderem, na mudança de práticas e discursos que colaboram com esses sistemas. Nós espíritas precisamos desenvolver uma perspectiva para uma antropologia da vida na matéria, caso contrário, continuaremos a patinar na reencarnação com perspectivas individualistas de progresso, enquanto a necropolítica mata a população negra e a população mais pobre, o machismo mata mulheres e lgbts, e o capitalismo exaure as forças produtivas do Espíritos encarnados, que em algumas regiões do planeta, incluindo o Brasil, mal tem com o que sustentar a sua vida na matéria.

Ninguém deveria morrer de fome ou pela sua diversidade, se somos iguais em espírito, somos diferentes nas diversidades que compõem os nossos aprendizados e nas diversidades com as quais nos projetos na reencarnação. Espíritas, sejamos antirracistas, antilgbtfóbicos, antimachistas, anticapitalistas, anti-preconceitos de toda sorte, para que possamos efetivamente aplicar os ensinamentos do Evangelho, os ensinamentos de Jesus, pois Jesus se estivesse reencarnado hoje, seria tudo isso e muito mais para ajudar esse mundo turbulento a ser um lugar menos hostil para todos nós.

Em memória de João Alberto Silveira Freitas, que os bons Espíritos possam acolher você, meu irmão. Em memória também de George Floyd, o menino Miguel, e de tantos outros que sofreram com a violência deste mundo.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? 1º ed. Belo Horizonte: LETRAMENTO, 2018.

BERTH, Joice. O que é empoderamento? 1º ed. Belo Horizonte: LETRAMENTO, 2018.

DJAMILA, Ribeiro. Pequeno Manual Antirracista. Tradução Heci Regina Canciani 1º ed. São Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 2019.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. 1º ed. São Paulo: BOITEMPO, 2016.

KARDEC, Allan. A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução José Herculano Pires. 20º ed. São Paulo: LAKE, 2001.

PIRES, Herculano. A Pedra e o Joio. 3º ed. São Paulo: PAIDEIA, 2005.

 

sábado, 7 de novembro de 2020

Necropolítca, Psicanálise e Espiritismo - Por Lindemberg Castro


NECROPOLÍTICA, PSICANÁLISE E ESPIRITISMO


Por Lindemberg Castro - Coordenador do Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires

 

A pandemia causada pelo novo coronavírus escancarou ainda mais diversas contradições a partir do mundo patologicamente considerado “normal”, no qual, mesmo agonizando em inúmeras desigualdades sociais, estávamos “acostumados” a viver (ou sobreviver). Com a ideia de um “novo normal”, que para muitos parece uma realidade alternativa já instalada, vemos que o tal “novo normal” é ainda mais cínico em seus discursos, justificando as desigualdades sociais de toda ordem, movimentando vidas humanas como peças de uma engrenagem (o que surpreenderia até mesmo Foucault), e banalizando a vida, reificando o ser humano (exatamente como nos previu George Lukács). No processo de reificação a partir das atividades capitalistas e produtivas, o ser humano passa a ser identificado cada vez mais como objeto inanimado e seu valor está diretamente relacionado com uma medida quantitativa dentro da produção de objetos ou mercadorias circulantes, perdendo a sua autonomia, a sua autoconsciência e a consciência da realidade que o cerca.

A Necroplítica nunca esteve tão fortalecida, como em nossos tempos atuais! Passamos de uma normose da qual nos queixávamos pela falta de tempo, pela baixa qualidade de vida ou pelo excesso de trabalho, para uma normose amplamente difundida, aceita e justificada pelos discursos neoliberais, discursos de ódio, notícias falsas, e relativização da vida humana possivelmente vitimada em plena pandemia, mas não necessariamente uma vida chorável ao ser perdida, como nos lembra Judith Butler (dentro da necropolítica, nem todas as vidas perdidas são choráveis). O mal-estar da civilização atingiu patamares ainda maiores, que surpreenderiam até mesmo Freud, devido ao esforço contínuo do ser humano em normatizar todos os instintos de morte a que nos alerta Herculano Pires em “Educação para a Morte” (2016).

Os discursos neoliberais, aliás, nunca estiveram tão em evidência em nosso país, pois agora, parcela considerável da população brasileira (incluindo parte dos espíritas) defende ações de austeridade do governo federal, apesar de não faltarem recursos disponíveis para o combate à pandemia, e mesmo sabendo que milhares de pessoas ou morrerão na miséria e no abandono ou pelo vírus, ou pelos dois simultaneamente. Isso, quando não justificam a inoperância governamental, que, indo além da relativização da gravidade da pandemia e com diversos discursos anticientíficos, vem em constante inação de prevenção e combate ao coronavírus, apesar da dramática situação do nosso país como um dos epicentros da pandemia, no mundo. O Brasil já ultrapassou a marca de 162 mil mortos, e por mais que parte dos espíritas se apoie na lei de causa de efeito para justificarem esses desencarnes, sabemos que a negligência governamental pode ter sido muito mais letal do que o vírus.

Na perspectiva da necropolítica, não possuímos liberdade e nem autonomia, há uma rejeição à crença “romântica” da soberania como algo em “que o sujeito é o principal autor, controlador do seu próprio significado”, Achille Mbembe (2018) preocupa-se, sob uma ótica inteiramente diversa sobre essas questões, “com aquelas formas de soberania cujo projeto central não é a luta pela autonomia, mas ‘a instrumentalização generalizada da existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações’. 

Estamos ignorando o luto coletivo mesmo com nosso dramático cenário, mas um luto dessa magnitude, do ponto de vista psicanalítico, não pode simplesmente ser ignorado, e a seu tempo, deverá cobrar o seu pagamento frente à nossa indiferença. Parte dos espíritas tem se apegado à Lei de Causa e Efeito para justificarem os mais de 162 mil desencarnes em nosso país, devido à pandemia; essa é outra forma de normose e talvez o estágio máximo da necropolítica espírita: justificar desencarnes, dos quais uma parte poderia ter sido evitada com ações governamentais efetivas de proteção às pessoas.

Aprendemos com o Espiritismo que nem todos os acontecimentos durante a reencarnação estão determinados, uma vez que a Filosofia Espírita não admite nenhuma forma de fatalismo; em O Livro dos Espíritos entendemos que a sociedade é responsável por todos os que fazem parte dela, e esse ponto traz consigo a necessidade de cada vez mais lutarmos por condições dignas de existência, de modo que a cada geração o bem-estar social seja ampliado. Aceitar que em meio a uma pandemia, as ações governamentais de prevenção e cuidado com a saúde das pessoas não adiantariam em nada já que “todas” estavam destinadas a morrer, nos coloca no mesmo patamar dos indiferentes citados por Gramsci, e nos conduz em uma perspectiva de alienação justificada pela necropolítica. De que servem então os meios materiais para a qualificação da existência na carne, se não puderem ser utilizados para a ampliação de oportunidades educacionais, culturais, econômicas, sociais, e em favor da saúde física dos Espíritos reencarnados?! A filósofa nigeriana Sophie Oluwole nos lembra que o desenvolvimento humano depende diretamente da ampliação das liberdades em todos os âmbitos da existência: do aspecto econômico ao cultural, do educacional ao social, da qualidade de vida à saúde; quando estamos reencarnados em um país que funciona na base da necropolítica, a nossa liberdade, já limitada pelo progresso espiritual tímido que realizamos até aqui, se torna muito mais diminuta, uma vez que nos são interditadas, muitas vezes, as condições básicas da existência material.

Também temos visto muitos espíritas reabrirem seus centros em plena pandemia, respaldados pelos decretos governamentais estaduais e municipais que permitem uma porcentagem de frequentadores em templos religiosos. Mas, como a pandemia ainda não acabou, é o caso de perguntarmos: há uma necessidade urgente em reabrir centro espírita agora, mesmo que os meses de setembro, outubro e novembro tenham sido os que registram maiores taxas de contaminação pelo coronavírus, no mundo?! Bom, alguns justificam sua decisão com base nas “ordens superiores da Espiritualidade maior” (seja lá o que signifique isso). Parece que parte dos espíritas esqueceu as recomendações de Kardec, na Revista Espírita de 1865, em que ele disserta sobre o papel dos espíritas durante a epidemia de cólera; Kardec afirma que desprezar medidas sanitárias frente a uma epidemia seria verdadeiro suicídio, e que cabe ao espírita velar pela saúde do seu corpo, para cumprir com seus deveres frente à reencarnação.

Quem quer que tenha lido e meditado nossa obra O Céu e Inferno segundo o Espiritismo, sobretudo o capítulo sobre as apreensões da morte, compreenderá a força moral que os espíritas adquirem em sua crença, em presença do flagelo que dizima as populações. Segue-se que vão negligenciar as precauções necessárias em casos semelhantes e baixar a cabeça diante do perigo? Absolutamente não. Eles tomarão todas aquelas que são aconselhadas pela prudência e por uma higiene racional, porque não são fatalistas e porque, se não temem a morte, sabem que não devem procurá-la. Ora, desprezar as medidas sanitárias que podem preservá-los seria um verdadeiro suicídio, cujas consequências conhecem muito bem para a ele se exporem. Consideram como um dever velar pela saúde do corpo, porque a saúde é necessária à realização dos deveres sociais. Se buscam prolongar a vida corporal, não é por apego à Terra, mas para ter mais tempo para progredir, melhorar-se, depurar-se, despojar-se do homem velho e adquirir maior soma de méritos para a vida espiritual (KARDEC, 1865). 

Urgentemente, seria fundamental que nós espíritas retomássemos o estudo aprofundado a partir da obra de Kardec, talvez isso nos tiraria da “paz de pantanal”, para usar um termo de Herculano Pires. Adorno (1967), em “Educação após Auschwitz) já nos alertou que os processos civilizatórios não se dão de forma a priori e nem são universais, cabendo à “educação o fim último de que Auschwitz não se repita”; mas, infelizmente a história humana conta em seu inconsciente coletivo, com diversos episódios de desumanização, e ao que parece a normatização da tragédia que envolve a pandemia é apenas mais um triste episódio do nosso processo de autoreificação.

Judith Butler, em entrevista concedida este ano, nos lança as seguintes perguntas: “em que circunstâncias é possível lamentar uma vida perdida? De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Quais são essas vidas que, se perdidas, não serão consideradas em absoluto uma perda? É possível que algumas de nossas vidas sejam consideradas choráveis e outras não”? Essas perguntas são absolutamente necessárias para todos nós que estamos reencarnados atualmente, quer sejamos espíritas ou não. Butler (2020) ainda explica que:

 

Faço essas perguntas difíceis e perturbadoras porque eu, como vocês, me oponho à morte violenta; à morte por meio da violência humana; à morte resultante de ações humanas, institucionais ou políticas; à morte provocada por uma negligência sistêmica por parte dos estados ou por modos de governança internacionais.

 

Todos nós deveríamos nos opor a todas as mortes provocadas pela negligência sistêmica que apaga as diferenças, as diversidades, que instrumentaliza a vida das pessoas e elege quem pode viver e quem pode morrer! Esse mecanismo não corresponde a uma lei natural, é algo forjado pelos sistemas de opressão que comandam o mundo; em O Livro dos Espíritos vemos que os problemas sociais são criados pelo ser humano, e não por Deus.

Se tivéssemos o hábito de não invisibilizarmos as questões sociais, compreenderíamos facilmente que a Doutrina Espírita reafirma a preocupação com elas, conectando-as ao progresso espiritual. Para o Espiritismo não há divisão entre a realidade social e a realidade espiritual, uma vez que estamos encarnados, somos espíritos encarnados, portanto, somos convidados a atuarmos no mundo. Mariotti (1967) nos diz que “o progresso é uma sucessão de fatos morais e sociais determinados pelas relações entre o elemento espiritual e o elemento material”.

Herculano Pires (2016) nos traz elementos filosóficos e psicanalíticos para compreendermos a indiferença ainda presente no ser humano e a frustração. Herculano diz que a frustração transformou a morte na única herança possível que temos construído. A necropolítica, na visão de Achille Mbembe surge como um projeto de poder dos que detém os poderes político e econômico, contudo, ela se fortalece quando a frustração e a indiferença de todos aqueles que se deixam contaminar por elas.

Para encerrar essas reflexões que ora nos detemos, elencamos abaixo uma citação de Herculano Pires (2016) ainda sobre os resultados da nossa frustração e da nossa indiferença, que alimentam não somente a necropolítica mas todas as formas de opressão e desigualdades:


Restaram em nossas mãos profanadoras apenas as heranças animais: a violência assassina que é o meio normal de que as feras se servem para afastar obstáculos do seu caminho; a astúcia da serpente para engolir e digerir os adversários mais frágeis; a destruição dos bens alheios em proveito próprio, no vampirismo desenfreado da selva social; a dominação arrogante dos que não dispõem de forças para se defender; a mentira, a trapaça, a perfídia de que os próprios selvagens se enojam, e que nós, os civilizados, transformamos, na alquimia da canalhice generalizada, em processos sutis de esperteza, que, para vergonha do século e da espécie, consideramos provas de inteligência. Nossos meios de fuga reduzem-se à covardia da fuga de nós mesmos (p. 63-64).

 

O Espiritismo nos convida à transformação de nós mesmos e das realidades sociais na reencarnação, a grande questão é: aceitaremos esse convite, ou continuaremos a reproduzir padrões de comportamento de violência, indiferença e negligência?

 

REFERÊNCIAS:

ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. Disponível em: https://rizomas.net/arquivos/Adorno-Educacao-apos-Auschwitz.pdf. Acesso em 07 de novembro de 2020.

BUTLER, Judith. De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Disponível em: https://brasil.elpais.com/babelia/2020-07-10/judith-butler-de-quem-sao-as-vidas-consideradas-choraveis-em-nosso-mundo-publico.html. Acessado em 07 de novembro de 2020.

COLOMBO, Cleusa Beraldi. Ideias sociais espíritas. São Paulo: EDITORA COMENIUS, 2014.

FREUD, Sigmund. O mal-estar na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 2010.

GRAMSCI, Antonio. Odeio os indiferentes. Tradução de Alvaro Bianchi. São Paulo: BOITEMPO, 2020.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de José Herculano Pires. 59ª ed. São Paulo: LAKE, 1998.

KARDEC, Allan. Revista Espírita: edição de 1865. Tradução de Salvador Gentile. 1ª ed. São Paulo: IDE, 1993.

PIRES, José Herculano. Introdução à Filosofia Espírita. São Paulo: FEESP, 1993.

PIRES, José Herculano. Educação para a Morte. 1ª ed. São Paulo: PAIDEIA, 2016.

MARIOTTI, Humberto. O homem e a sociedade numa nova civilização. São Paulo: EDICEL, 1967.

MBEMBE, Achille. Necropolítica. São Paulo: N-1 EDIÇÕES, 2018.


 

Projeto Diálogos Filosóficos recebe Astrid Sayegh neste domingo

 


O Projeto Diálogos Filosóficos deste domingo, 08/11, receberá Astrid Sayegh, fundadora do Instituto Espírita de Estudos Filosóficos - IEEF, situado em São Paulo. Pós-doutora em Filosofia pela Universidade de São Paulo, Astrid possui diversas ações de pesquisa e divulgação no âmbito da Filosofia Espírita. Para conferir o trabalho desenvolvido pelo IEEF, basta acessar o link: Instituto Espírita de Estudos Filosóficos.

Neste domingo, o projeto abordará a obra Introdução à Filosofia Espírita, de Herculano Pires.

A mediação do bate-papo virtual será feita pelo coordenador do Ágora Espírita, Alexandre Júnior, e os comentários ficarão a carga de Lindemberg Castro, coordenador do Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires. O Projeto Diálogos Filosóficos é fruto de uma parceria entre Ágora Espírita e IFEHP, com o intuito de divulgar autores e temas relacionados à Filosofia Espírita. O Projeto ocorre todo domingo, na página no Facebook do Ágora Espírita, sempre às 19h.