O
que nos inspirou a produzir as reflexões elencadas aqui, além da alusão ao mês
da Consciência Negra, e todas as situações deploráveis que temos visto nos
últimos dias, de racismo declarado, como os discursos absurdos do presidente e do
vice-presidente do Brasil, e o revoltante espancamento até a morte do homem
negro João Alberto Silveira Freitas,
em pleno Dia da Consciência Negra, também nos inspirou o livro “Pequeno Manual Antirracista”, da
filósofa brasileira Djamila Ribeiro.
Pensando em tudo o que a referida filósofa nos diz em sua obra, e contextualizando
com o movimento espírita no Brasil, vemos que o racismo, assim como as diversas
questões sociais, é amplamente invisibilizado, como se as casas espíritas não
estivessem inseridas em um mundo físico cheio de desigualdades, e como se nós
Espíritos não estivéssemos reencarnados em um tempo histórico e social que
reflete os preconceitos de sua época. Invisibilizar as diversidades, sejam elas
subjetivas ou sociais é a práxis recorrente do movimento espírita, marcado pelo
Igrejismo, como bem denuncia Herculano Pires (2005) em “A Pedra e o Joio” e
pela reforma íntima individualista e alienada das realidades sociais.
Em
pleno 2020 ainda é possível ver palestrantes de grande vulto dentro do
movimento espírita, com discursos que invisibilizam as diversidades, sempre
apelando para ideias como “somos todos iguais”, “precisamos de uma consciência
humana e não de uma consciência negra”, etc. O que os diletos palestrantes
ignoram é que enquanto ainda vivermos em um mundo de provas e expiações e cheio
de desigualdades sociais causadas por nós mesmos, conforme vemos em O Livro dos
Espíritos, a nossa consciência (no sentido de percepção das realidades e de nós
mesmos na encarnação), ainda precisa ter cor, gênero, orientação sexual, etnia,
cultura e classe. Sem essas perspectivas, viveremos apenas reencarnações
contemplativas em que a práxis será ascética e individual em prol de si mesmo. Alienar-se
da vida na matéria em favor de promessas de uma vida na colônia espiritual,
transformou algumas práticas espíritas em verdadeira venda de indulgências com
base na chamada reforma íntima, na qual a mansidão é mais importante do que
transformar o mundo em um lugar mais acolhedor para as próximas gerações; a
mansidão tornou-se mais importante do que o amor, infelizmente.
O
que dizer, por exemplo, de uma postagem da FEB – Federação Espírita Brasileira,
nas redes sociais, recheada de comentários racistas por parte de alguns
espíritas?! A FEB, apesar de diversos problemas institucionais merecedores de
crítica pelo movimento espírita, fez bem em aderir à campanha do Dia da
Consciência Negra, postando um conteúdo em alusão a essa luta; não demorou para
espíritas bolsonaristas e conservadores de toda sorte comentarem a postagem de
forma agressiva, anti-fraterna e com o racismo mais odiosamente declarado que
poucas vezes teremos a oportunidade de ver, principalmente porque no Brasil o
racismo é cínico, que não raro usa o disfarce recreativo, para utilizar um
termo de Silvio Almeida (2018) do
seu livro “O que é Racismo Estrutural?”,
para se projetar nos discursos e práticas.
Seguindo
os passos de Djamila Ribeiro, em relação à sua obra já mencionada acima,
nomearemos algumas seções do nosso artigo de acordo com o livro da filósofa,
procurando, no entanto, tecer reflexões para o movimento espírita, em diálogo
com autores espíritas e não espíritas.
1.
Informe-se sobre o Racismo
Compreender
as dinâmicas do racismo estrutural é fundamental para repensarmos as práticas e
os discursos que colaboram com os sistemas racistas, conforme nos aponta Silvio
Almeida (2018). Angela Davis (2016),
filósofa estadunidense, nos aponta em “Mulheres,
Raça e Classe”, que na base dos sistemas de opressão que regem o mundo, o
Racismo forma um tripé junto com o Capitalismo e o Machismo, portanto, é
crucial entender que a interseccionalidade entre eles forma as opressões
estruturais de difícil manejo e transformação, mas que exige de todos nós o
compromisso de não apenas nos dizermos não-racistas, mas de desenvolvermos práticas
efetivamente antirracistas, como bem aponta Angela Davis. O desafio de
desenvolvermos práticas antirracistas também convida os espíritas,
progressistas ou não, a se engajarem nessa luta.
Kabengele Munanga,
professor na Universidade de São Paulo, denuncia que duas das marcas do racismo
brasileiro é o silêncio e a negação; um país acostumado a não pautar como
deveria as suas questões sociais, invisibiliza a sua própria história para
criar um mito de igualdade racial que nunca existiu em terras tupiniquins, cuja
vocação para a pátria do evangelho ainda está longe de ser confirmada. A
invisibilização e a negação a que o Brasil se acostumou frente ao seu passado e
o seu presente, atualmente atinge esferas de mentiras conceituais forjadas por
líderes de governo, para escamotear ou difamar questões sociais importantes, do
racismo aos discursos de ódio, da lgbtfobia ao discurso anticiência, da
minimização de uma pandemia ao ataque à educação pública. Tudo isso atordoa uma
população marcada pela desigualdade e pela desinformação.
Devemos
aprender com a História, a Filosofia, a Sociologia, a Geografia, a Antropologia,
em fim, com as ciências humanas e sociais que nos trazem dados sobre a nossa
própria história, ao mesmo tempo em que propõem mudanças de práticas e
discursos. Devemos aprender com os grupos sociais diversos, que há décadas
lutam por direitos civis e sociais para setores da sociedade historicamente
excluídos, como a população negra. Devemos aprender com o Movimento Negro no
Brasil, sua atuação, sua luta, suas conquistas que estão sempre ameaçadas pelos
poderes hegemônicos.
Devemos
aprender com o Feminismo Negro, que
traça questões específicas e fundamentais sobre a mulher negra, pois incide
sobre ela a opressão de raça e classe, acrescida da opressão de gênero. Em
discurso na Universidade Federal da Bahia, quando da sua vinda ao Brasil em
2017, Angela Davis nos disse que: “quando a mulher negra se movimenta, toda a
estrutura da sociedade se movimenta com ela”; a sua afirmação tem por
entendimento que a mulher negra, dentro do sistema racista de opressão sofre
ainda mais, mas que, ao movimentar-se na luta, força a estrutura social a sair
do lugar comum.
Estudemos
autores negros para conhecer a percepção e as pesquisas que eles desenvolvem
sobre os mais variados temas, incluindo o racismo. Além de Djamila Riberio,
Kabengele Munanga, Silvio Almeida e Angela Davis, que já citamos acima, temos
ainda pensadores negros incríveis para a nossa pesquisa: Achille Mbembe, Karla Akotirene, Lelia Gonzalez, bell hooks, Chimamanda
Ngozi Adichie, Frantz Fanon, Sueli Carneiro, Milton Santos, Paulina Chiziane,
Audre Lorde, Sophie Oluwole, Joice Berth, Grada Kilomba, entre outros. No
final do seu livro “Pequeno Manual Antirracista”, Djamila elenca dezenas de
pensadores negros para a nossa cultura, sugerimos ao leitor que possa ler essa
obra da nossa filósofa brasileira.
E
sobre o que nós espíritas, em particular, que estamos inseridos em uma doutrina
progressista como o é o Espiritismo, estamos fazendo pela luta antirracista?! O
que nós, enquanto cidadãos, estamos fazendo contra o sistema de opressão
racista?! Sobre essas questões, Djamila (2019) nos diz que:
Chegamos, assim, à
seguinte pergunta: o que, de fato, cada um de nós tem feito e pode fazer pela
luta antirracista? O autoquestionamento — fazer perguntas, entender seu lugar e
duvidar do que parece “natural” — é a primeira medida para evitar reproduzir
esse tipo de violência, que privilegia uns e oprime outros. Simone de Beauvoir,
em referência a Stendhal, autor que segundo a filósofa atribuía humanidade às
suas personagens femininas, dizia que um homem que enxergasse a mulher como
sujeito e tivesse uma relação de alteridade para com ela poderia ser
considerado feminista. Esse mesmo raciocínio pode ser usado para pensar o
antirracismo, com a ressalva de que sobre a mulher negra incide a opressão de
classe, de gênero e de raça, tornando o processo ainda mais complexo (p. 11).
2. Enxergue a negritude
A
negritude, nas práticas sociais mais comuns, é relegada a um lugar social
subalterno, submisso, de modo que o tratamento para brancos e negros é
diferenciado desde a infância, nas práticas escolares, até a vida adulta. Os
currículos ainda são permeados pela superioridade da cultura européia, bem como
os valores e estéticas europeus. Joice
Berth (2018), afirma que “não me descobri negra, fui acusada de sê-la”;
isso porque, na análise de Djamila, o negro possui um não-lugar social por ser
apenas o contrário do branco e não o seu igual; a mesma alusão encontramos
também em Simone de Beauvoir ao
falar que para o machismo, a mulher não é um ser, é apenas um não-ser contrário
ao homem, portanto, não possui identidade social própria. Esse é um belo
exemplo de como os sistemas de opressão repetem estratégias de dominação, quer
seja na questão de raça, quer seja na questão de gênero.
O
apagamento das expressões e da cultura negra também ocorre em variados setores:
produção de conhecimentos, artes, estética, mídia e comunicação, etc. Portanto,
uma ação prática é tirarmos da invisibilidade essas questões e essas produções,
para atuarmos contra esses apagamentos. Grada
Kilomba nos diz que o racismo é uma problemática branca, pois em um dado
momento histórico foram os brancos que diferenciaram os negros, não os
considerando como seres humanos, mas como mercadorias; a escravização foi o
primeiro processo de fetichização em larga escala, direcionada a uma parcela da
população mundial: os negros. Apesar de ser uma problemática criada pelos
brancos, são os negros que pautam a luta antirracista, desde que sua cultura,
suas etnias, seus idiomas e seus costumes foram tomados de assalto a partir da
Colonização européia.
Sobre
tirarmos essas temáticas da invisibilidade, Djamila (2019) nos diz:
É importante ter em
mente que para pensar soluções para uma realidade, devemos tirá-la da
invisibilidade. Portanto, frases como “eu não vejo cor” não ajudam. O problema
não é a cor, mas seu uso como justificativa para segregar e oprimir. Vejam
cores, somos diversos e não há nada de errado nisso — se vivemos relações
raciais, é preciso falar sobre negritude e também sobre branquitude (p. 15,
2019).
Nós
espíritas, para colaborarmos com o processo de retirar da invisibilidade a
questão da luta antirracista, precisamos estudar mais a respeito, e
produzirmos: textos, cursos, seminários, artigos, livros, etc., pautando esses
temas. Precisamos entender que vivemos no mundo material e precisamos lidar com
a questões sociais e históricas do nosso tempo. Alguns espíritas se utilizam de
argumentos como “ah, mas somos todos iguais perante Deus”, ou “somos todos
Espíritos”; as duas sentenças estão corretas em seu sentido essencial, mas não
criam contextos com os processos reencarnatórios. É na reencarnação que
travamos as mais árduas batalhas morais e existenciais, e além das nossas
questões individuais para darmos conta, é no mundo material que enfrentamos as
injustiças e desigualdades, o preconceito, os processos anticivilizatórios, e
toda sorte de mazelas que, cabe a nós construirmos práticas e discursos que
transformem para melhor este mundo. Nenhum conceito espírita serve para secar o
nosso coração às dores dos outros, e nem para cruzar os nossos braços frente às
desigualdades sociais. A práxis máxima do Espiritismo é o amor, sentimento que
precisa ser transformado em ação de amparo, de empatia e de acolhimento a quem
sofre.
O
nosso papel frente à transformação do mundo, e não apenas de nós mesmos, está
explicitado nesta fala de Allan Kardec (2001) em “A Gênese”, sobre as questões
sociais:
Com
a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo
Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe
ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos
invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da
mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da
reencarnação. Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio
da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos
direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade (p. 25).
3.
Sejamos todos antirracistas
Djamila
Ribeiro nos diz, no último capítulo do seu livro com o qual estamos trabalhando
nesse artigo, que o racismo, apesar de ser estrutural, possui uma capacidade
ampla de passar despercebido; isso acontece porque os sistemas de opressão que
atuam no mundo foram demarcados como naturais e essenciais à condição humana,
sendo assim, além do racismo, nós também podemos perceber o machismo e o
capitalismo como estruturais, ao ponto de uma enorme parcela da população
considerar difícil que pudéssemos ter outros valores e outras formas de viver
na reencarnação.
Não
é fácil, sobretudo em um país como o Brasil, percebermos os privilégios que
determinados grupos sociais possuem, em detrimento de uma população que em sua
maioria é historicamente explorada por toda sorte de opressões. No Brasil, não
é difícil de encontrarmos pessoas, por exemplo, que se incomodam profundamente
com o auxílio emergencial para a população em meio a uma Pandemia, mas que já
internalizaram a naturalidade dos privilégios da classe política e dos poderes
que governam o país; isso só para dar um exemplo da dificuldade que temos de
perceber como as desigualdades sociais são construídas e justificadas.
“Pessoas
brancas devem se responsabilizar criticamente pelo sistema de opressão que as
privilegia historicamente”, nos diz Djamila, e nós acrescentamos ainda que: os espíritas devem se responsabilizar em
pensar sobre o mundo e sobre as realidades sociais de forma crítica, percebendo
e denunciando os sistemas de opressão vigentes, e atuando, tanto quanto
puderem, na mudança de práticas e
discursos que colaboram com esses sistemas. Nós espíritas precisamos desenvolver
uma perspectiva para uma antropologia da vida na matéria, caso contrário,
continuaremos a patinar na reencarnação com perspectivas individualistas de
progresso, enquanto a necropolítica mata a população negra e a população mais
pobre, o machismo mata mulheres e lgbts, e o capitalismo exaure as forças
produtivas do Espíritos encarnados, que em algumas regiões do planeta,
incluindo o Brasil, mal tem com o que sustentar a sua vida na matéria.
Ninguém
deveria morrer de fome ou pela sua diversidade, se somos iguais em espírito,
somos diferentes nas diversidades que compõem os nossos aprendizados e nas
diversidades com as quais nos projetos na reencarnação. Espíritas, sejamos antirracistas,
antilgbtfóbicos, antimachistas, anticapitalistas, anti-preconceitos de toda
sorte, para que possamos efetivamente aplicar os ensinamentos do Evangelho, os
ensinamentos de Jesus, pois Jesus se estivesse reencarnado hoje, seria tudo
isso e muito mais para ajudar esse mundo turbulento a ser um lugar menos hostil
para todos nós.
Em
memória de João Alberto Silveira Freitas,
que os bons Espíritos possam acolher você, meu irmão. Em memória também de
George Floyd, o menino Miguel, e de tantos outros que sofreram com a violência
deste mundo.
REFERÊNCIAS
ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? 1º ed. Belo
Horizonte: LETRAMENTO, 2018.
BERTH, Joice. O que é empoderamento? 1º ed. Belo
Horizonte: LETRAMENTO, 2018.
DJAMILA, Ribeiro. Pequeno Manual Antirracista. Tradução
Heci Regina Canciani 1º ed. São Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 2019.
DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. 1º ed. São
Paulo: BOITEMPO, 2016.
KARDEC, Allan. A Gênese: os milagres e as predições
segundo o Espiritismo. Tradução José Herculano Pires. 20º ed. São Paulo:
LAKE, 2001.
PIRES, Herculano. A Pedra e o Joio. 3º ed. São Paulo:
PAIDEIA, 2005.
Parabéns pelo lúcido artigo, Lindemberg. Muito importante afirmar a posição antirracista nestes tempos sombrios em que o ódio tenta silenciar as mais pertinentes reivindicações. Um grande abraço.
ResponderExcluirGratidão, amigo Elias! De fato, precisamos pensar em mudanças de práticas e discursos ligados aos movimentos espíritas, de modo a que sejamos mais acolhedores. Tradicionalmente o MEB mais conservador acaba por invisibilizar as temáticas sociais, o que colabora com o apagamento das diversidades. Sigamos firmes nesse propósito de inclusão! Abraços!
ExcluirParabéns meu amigo, pelo lúcido artigo. Em que pese estarmos na luta e acreditarmos que através dela, poderemos sim, tornar possível, a construção de um Movimento Espírita engajado nas causas sociais e ciente de sua responsabilidade com a construção da Igualdade e de justiça social...
ResponderExcluirUm grande abraço, gratidão pela partilha e parabéns pelo artigo!!!
Exato, meu amigo Alexandre! é preciso que o MEB conservador compreenda que invisibilizar os temas sociais também significa invisibilizar VIDAS HUMANAS; a reencarnação é diversa por natureza, e estamos inseridos nessas diversidades, negar isso é negar os mecanismos da própria reencarnação. Abraços e gratidão pela devolutiva!
ExcluirSenti falta do link com a postagem da FEB em torno do Dia da Consciência Negra.
ResponderExcluirBom dia, Lair! Como vai?!
ResponderExcluirEu não inseri o link da publicação da FEB, porque é muito simples de encontrar através de uma rápida pesquisa, já que está na página no Facebook da instituição. Em todo caso, eis o link: https://www.facebook.com/FEBoficial/photos/a.151210408277272/3698869910177953/
Excelente texto, Lindemberg! Senti-me contemplada em cada linha. Eu vi a postagem da FEB, fiz um comentário lá e recebi o ódio de alguns racistas. Isso é assustador! Sejamos nós, querido, instrumentos de transformação. Somos muitos e somos fortes. Siga firme aí e se precisar de alguma coisa pode contar comigo.
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