sábado, 21 de novembro de 2020

Pequeno Manual Antirracista para Espíritas - Por Lindemberg Castro


Artigo: "Pequeno Manual Antirracista para Espíritas"
Por Lindemberg Castro - Coordenador do IFEHP


O que nos inspirou a produzir as reflexões elencadas aqui, além da alusão ao mês da Consciência Negra, e todas as situações deploráveis que temos visto nos últimos dias, de racismo declarado, como os discursos absurdos do presidente e do vice-presidente do Brasil, e o revoltante espancamento até a morte do homem negro João Alberto Silveira Freitas, em pleno Dia da Consciência Negra, também nos inspirou o livro “Pequeno Manual Antirracista”, da filósofa brasileira Djamila Ribeiro. Pensando em tudo o que a referida filósofa nos diz em sua obra, e contextualizando com o movimento espírita no Brasil, vemos que o racismo, assim como as diversas questões sociais, é amplamente invisibilizado, como se as casas espíritas não estivessem inseridas em um mundo físico cheio de desigualdades, e como se nós Espíritos não estivéssemos reencarnados em um tempo histórico e social que reflete os preconceitos de sua época. Invisibilizar as diversidades, sejam elas subjetivas ou sociais é a práxis recorrente do movimento espírita, marcado pelo Igrejismo, como bem denuncia Herculano Pires (2005) em “A Pedra e o Joio” e pela reforma íntima individualista e alienada das realidades sociais.

Em pleno 2020 ainda é possível ver palestrantes de grande vulto dentro do movimento espírita, com discursos que invisibilizam as diversidades, sempre apelando para ideias como “somos todos iguais”, “precisamos de uma consciência humana e não de uma consciência negra”, etc. O que os diletos palestrantes ignoram é que enquanto ainda vivermos em um mundo de provas e expiações e cheio de desigualdades sociais causadas por nós mesmos, conforme vemos em O Livro dos Espíritos, a nossa consciência (no sentido de percepção das realidades e de nós mesmos na encarnação), ainda precisa ter cor, gênero, orientação sexual, etnia, cultura e classe. Sem essas perspectivas, viveremos apenas reencarnações contemplativas em que a práxis será ascética e individual em prol de si mesmo. Alienar-se da vida na matéria em favor de promessas de uma vida na colônia espiritual, transformou algumas práticas espíritas em verdadeira venda de indulgências com base na chamada reforma íntima, na qual a mansidão é mais importante do que transformar o mundo em um lugar mais acolhedor para as próximas gerações; a mansidão tornou-se mais importante do que o amor, infelizmente.

O que dizer, por exemplo, de uma postagem da FEB – Federação Espírita Brasileira, nas redes sociais, recheada de comentários racistas por parte de alguns espíritas?! A FEB, apesar de diversos problemas institucionais merecedores de crítica pelo movimento espírita, fez bem em aderir à campanha do Dia da Consciência Negra, postando um conteúdo em alusão a essa luta; não demorou para espíritas bolsonaristas e conservadores de toda sorte comentarem a postagem de forma agressiva, anti-fraterna e com o racismo mais odiosamente declarado que poucas vezes teremos a oportunidade de ver, principalmente porque no Brasil o racismo é cínico, que não raro usa o disfarce recreativo, para utilizar um termo de Silvio Almeida (2018) do seu livro “O que é Racismo Estrutural?”, para se projetar nos discursos e práticas.

Seguindo os passos de Djamila Ribeiro, em relação à sua obra já mencionada acima, nomearemos algumas seções do nosso artigo de acordo com o livro da filósofa, procurando, no entanto, tecer reflexões para o movimento espírita, em diálogo com autores espíritas e não espíritas.

1. Informe-se sobre o Racismo

Compreender as dinâmicas do racismo estrutural é fundamental para repensarmos as práticas e os discursos que colaboram com os sistemas racistas, conforme nos aponta Silvio Almeida (2018). Angela Davis (2016), filósofa estadunidense, nos aponta em “Mulheres, Raça e Classe”, que na base dos sistemas de opressão que regem o mundo, o Racismo forma um tripé junto com o Capitalismo e o Machismo, portanto, é crucial entender que a interseccionalidade entre eles forma as opressões estruturais de difícil manejo e transformação, mas que exige de todos nós o compromisso de não apenas nos dizermos não-racistas, mas de desenvolvermos práticas efetivamente antirracistas, como bem aponta Angela Davis. O desafio de desenvolvermos práticas antirracistas também convida os espíritas, progressistas ou não, a se engajarem nessa luta.

Kabengele Munanga, professor na Universidade de São Paulo, denuncia que duas das marcas do racismo brasileiro é o silêncio e a negação; um país acostumado a não pautar como deveria as suas questões sociais, invisibiliza a sua própria história para criar um mito de igualdade racial que nunca existiu em terras tupiniquins, cuja vocação para a pátria do evangelho ainda está longe de ser confirmada. A invisibilização e a negação a que o Brasil se acostumou frente ao seu passado e o seu presente, atualmente atinge esferas de mentiras conceituais forjadas por líderes de governo, para escamotear ou difamar questões sociais importantes, do racismo aos discursos de ódio, da lgbtfobia ao discurso anticiência, da minimização de uma pandemia ao ataque à educação pública. Tudo isso atordoa uma população marcada pela desigualdade e pela desinformação.

Devemos aprender com a História, a Filosofia, a Sociologia, a Geografia, a Antropologia, em fim, com as ciências humanas e sociais que nos trazem dados sobre a nossa própria história, ao mesmo tempo em que propõem mudanças de práticas e discursos. Devemos aprender com os grupos sociais diversos, que há décadas lutam por direitos civis e sociais para setores da sociedade historicamente excluídos, como a população negra. Devemos aprender com o Movimento Negro no Brasil, sua atuação, sua luta, suas conquistas que estão sempre ameaçadas pelos poderes hegemônicos.

Devemos aprender com o Feminismo Negro, que traça questões específicas e fundamentais sobre a mulher negra, pois incide sobre ela a opressão de raça e classe, acrescida da opressão de gênero. Em discurso na Universidade Federal da Bahia, quando da sua vinda ao Brasil em 2017, Angela Davis nos disse que: “quando a mulher negra se movimenta, toda a estrutura da sociedade se movimenta com ela”; a sua afirmação tem por entendimento que a mulher negra, dentro do sistema racista de opressão sofre ainda mais, mas que, ao movimentar-se na luta, força a estrutura social a sair do lugar comum.

Estudemos autores negros para conhecer a percepção e as pesquisas que eles desenvolvem sobre os mais variados temas, incluindo o racismo. Além de Djamila Riberio, Kabengele Munanga, Silvio Almeida e Angela Davis, que já citamos acima, temos ainda pensadores negros incríveis para a nossa pesquisa: Achille Mbembe, Karla Akotirene, Lelia Gonzalez, bell hooks, Chimamanda Ngozi Adichie, Frantz Fanon, Sueli Carneiro, Milton Santos, Paulina Chiziane, Audre Lorde, Sophie Oluwole, Joice Berth, Grada Kilomba, entre outros. No final do seu livro “Pequeno Manual Antirracista”, Djamila elenca dezenas de pensadores negros para a nossa cultura, sugerimos ao leitor que possa ler essa obra da nossa filósofa brasileira.

E sobre o que nós espíritas, em particular, que estamos inseridos em uma doutrina progressista como o é o Espiritismo, estamos fazendo pela luta antirracista?! O que nós, enquanto cidadãos, estamos fazendo contra o sistema de opressão racista?! Sobre essas questões, Djamila (2019) nos diz que:

 

Chegamos, assim, à seguinte pergunta: o que, de fato, cada um de nós tem feito e pode fazer pela luta antirracista? O autoquestionamento — fazer perguntas, entender seu lugar e duvidar do que parece “natural” — é a primeira medida para evitar reproduzir esse tipo de violência, que privilegia uns e oprime outros. Simone de Beauvoir, em referência a Stendhal, autor que segundo a filósofa atribuía humanidade às suas personagens femininas, dizia que um homem que enxergasse a mulher como sujeito e tivesse uma relação de alteridade para com ela poderia ser considerado feminista. Esse mesmo raciocínio pode ser usado para pensar o antirracismo, com a ressalva de que sobre a mulher negra incide a opressão de classe, de gênero e de raça, tornando o processo ainda mais complexo (p. 11).

 

 2. Enxergue a negritude

A negritude, nas práticas sociais mais comuns, é relegada a um lugar social subalterno, submisso, de modo que o tratamento para brancos e negros é diferenciado desde a infância, nas práticas escolares, até a vida adulta. Os currículos ainda são permeados pela superioridade da cultura européia, bem como os valores e estéticas europeus. Joice Berth (2018), afirma que “não me descobri negra, fui acusada de sê-la”; isso porque, na análise de Djamila, o negro possui um não-lugar social por ser apenas o contrário do branco e não o seu igual; a mesma alusão encontramos também em Simone de Beauvoir ao falar que para o machismo, a mulher não é um ser, é apenas um não-ser contrário ao homem, portanto, não possui identidade social própria. Esse é um belo exemplo de como os sistemas de opressão repetem estratégias de dominação, quer seja na questão de raça, quer seja na questão de gênero.

O apagamento das expressões e da cultura negra também ocorre em variados setores: produção de conhecimentos, artes, estética, mídia e comunicação, etc. Portanto, uma ação prática é tirarmos da invisibilidade essas questões e essas produções, para atuarmos contra esses apagamentos. Grada Kilomba nos diz que o racismo é uma problemática branca, pois em um dado momento histórico foram os brancos que diferenciaram os negros, não os considerando como seres humanos, mas como mercadorias; a escravização foi o primeiro processo de fetichização em larga escala, direcionada a uma parcela da população mundial: os negros. Apesar de ser uma problemática criada pelos brancos, são os negros que pautam a luta antirracista, desde que sua cultura, suas etnias, seus idiomas e seus costumes foram tomados de assalto a partir da Colonização européia.  

Sobre tirarmos essas temáticas da invisibilidade, Djamila (2019) nos diz:

 

É importante ter em mente que para pensar soluções para uma realidade, devemos tirá-la da invisibilidade. Portanto, frases como “eu não vejo cor” não ajudam. O problema não é a cor, mas seu uso como justificativa para segregar e oprimir. Vejam cores, somos diversos e não há nada de errado nisso — se vivemos relações raciais, é preciso falar sobre negritude e também sobre branquitude (p. 15, 2019).

 

Nós espíritas, para colaborarmos com o processo de retirar da invisibilidade a questão da luta antirracista, precisamos estudar mais a respeito, e produzirmos: textos, cursos, seminários, artigos, livros, etc., pautando esses temas. Precisamos entender que vivemos no mundo material e precisamos lidar com a questões sociais e históricas do nosso tempo. Alguns espíritas se utilizam de argumentos como “ah, mas somos todos iguais perante Deus”, ou “somos todos Espíritos”; as duas sentenças estão corretas em seu sentido essencial, mas não criam contextos com os processos reencarnatórios. É na reencarnação que travamos as mais árduas batalhas morais e existenciais, e além das nossas questões individuais para darmos conta, é no mundo material que enfrentamos as injustiças e desigualdades, o preconceito, os processos anticivilizatórios, e toda sorte de mazelas que, cabe a nós construirmos práticas e discursos que transformem para melhor este mundo. Nenhum conceito espírita serve para secar o nosso coração às dores dos outros, e nem para cruzar os nossos braços frente às desigualdades sociais. A práxis máxima do Espiritismo é o amor, sentimento que precisa ser transformado em ação de amparo, de empatia e de acolhimento a quem sofre.

O nosso papel frente à transformação do mundo, e não apenas de nós mesmos, está explicitado nesta fala de Allan Kardec (2001) em “A Gênese”, sobre as questões sociais:

 

Com a reencarnação, desaparecem os preconceitos de raças e de castas, pois o mesmo Espírito pode tornar a nascer rico ou pobre, capitalista ou proletário, chefe ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravidão, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que prime, em lógica, ao fato material da reencarnação. Se, pois, a reencarnação funda numa lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, também funda na mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade (p. 25).

 

3. Sejamos todos antirracistas

Djamila Ribeiro nos diz, no último capítulo do seu livro com o qual estamos trabalhando nesse artigo, que o racismo, apesar de ser estrutural, possui uma capacidade ampla de passar despercebido; isso acontece porque os sistemas de opressão que atuam no mundo foram demarcados como naturais e essenciais à condição humana, sendo assim, além do racismo, nós também podemos perceber o machismo e o capitalismo como estruturais, ao ponto de uma enorme parcela da população considerar difícil que pudéssemos ter outros valores e outras formas de viver na reencarnação.

Não é fácil, sobretudo em um país como o Brasil, percebermos os privilégios que determinados grupos sociais possuem, em detrimento de uma população que em sua maioria é historicamente explorada por toda sorte de opressões. No Brasil, não é difícil de encontrarmos pessoas, por exemplo, que se incomodam profundamente com o auxílio emergencial para a população em meio a uma Pandemia, mas que já internalizaram a naturalidade dos privilégios da classe política e dos poderes que governam o país; isso só para dar um exemplo da dificuldade que temos de perceber como as desigualdades sociais são construídas e justificadas.

“Pessoas brancas devem se responsabilizar criticamente pelo sistema de opressão que as privilegia historicamente”, nos diz Djamila, e nós acrescentamos ainda que: os espíritas devem se responsabilizar em pensar sobre o mundo e sobre as realidades sociais de forma crítica, percebendo e denunciando os sistemas de opressão vigentes, e atuando, tanto quanto puderem, na mudança de práticas e discursos que colaboram com esses sistemas. Nós espíritas precisamos desenvolver uma perspectiva para uma antropologia da vida na matéria, caso contrário, continuaremos a patinar na reencarnação com perspectivas individualistas de progresso, enquanto a necropolítica mata a população negra e a população mais pobre, o machismo mata mulheres e lgbts, e o capitalismo exaure as forças produtivas do Espíritos encarnados, que em algumas regiões do planeta, incluindo o Brasil, mal tem com o que sustentar a sua vida na matéria.

Ninguém deveria morrer de fome ou pela sua diversidade, se somos iguais em espírito, somos diferentes nas diversidades que compõem os nossos aprendizados e nas diversidades com as quais nos projetos na reencarnação. Espíritas, sejamos antirracistas, antilgbtfóbicos, antimachistas, anticapitalistas, anti-preconceitos de toda sorte, para que possamos efetivamente aplicar os ensinamentos do Evangelho, os ensinamentos de Jesus, pois Jesus se estivesse reencarnado hoje, seria tudo isso e muito mais para ajudar esse mundo turbulento a ser um lugar menos hostil para todos nós.

Em memória de João Alberto Silveira Freitas, que os bons Espíritos possam acolher você, meu irmão. Em memória também de George Floyd, o menino Miguel, e de tantos outros que sofreram com a violência deste mundo.

 

REFERÊNCIAS

ALMEIDA, Silvio. O que é racismo estrutural? 1º ed. Belo Horizonte: LETRAMENTO, 2018.

BERTH, Joice. O que é empoderamento? 1º ed. Belo Horizonte: LETRAMENTO, 2018.

DJAMILA, Ribeiro. Pequeno Manual Antirracista. Tradução Heci Regina Canciani 1º ed. São Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 2019.

DAVIS, Angela. Mulheres, Raça e Classe. 1º ed. São Paulo: BOITEMPO, 2016.

KARDEC, Allan. A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução José Herculano Pires. 20º ed. São Paulo: LAKE, 2001.

PIRES, Herculano. A Pedra e o Joio. 3º ed. São Paulo: PAIDEIA, 2005.

 

7 comentários:

  1. Parabéns pelo lúcido artigo, Lindemberg. Muito importante afirmar a posição antirracista nestes tempos sombrios em que o ódio tenta silenciar as mais pertinentes reivindicações. Um grande abraço.

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    1. Gratidão, amigo Elias! De fato, precisamos pensar em mudanças de práticas e discursos ligados aos movimentos espíritas, de modo a que sejamos mais acolhedores. Tradicionalmente o MEB mais conservador acaba por invisibilizar as temáticas sociais, o que colabora com o apagamento das diversidades. Sigamos firmes nesse propósito de inclusão! Abraços!

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  2. Parabéns meu amigo, pelo lúcido artigo. Em que pese estarmos na luta e acreditarmos que através dela, poderemos sim, tornar possível, a construção de um Movimento Espírita engajado nas causas sociais e ciente de sua responsabilidade com a construção da Igualdade e de justiça social...
    Um grande abraço, gratidão pela partilha e parabéns pelo artigo!!!

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    1. Exato, meu amigo Alexandre! é preciso que o MEB conservador compreenda que invisibilizar os temas sociais também significa invisibilizar VIDAS HUMANAS; a reencarnação é diversa por natureza, e estamos inseridos nessas diversidades, negar isso é negar os mecanismos da própria reencarnação. Abraços e gratidão pela devolutiva!

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  3. Senti falta do link com a postagem da FEB em torno do Dia da Consciência Negra.

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  4. Bom dia, Lair! Como vai?!

    Eu não inseri o link da publicação da FEB, porque é muito simples de encontrar através de uma rápida pesquisa, já que está na página no Facebook da instituição. Em todo caso, eis o link: https://www.facebook.com/FEBoficial/photos/a.151210408277272/3698869910177953/

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  5. Excelente texto, Lindemberg! Senti-me contemplada em cada linha. Eu vi a postagem da FEB, fiz um comentário lá e recebi o ódio de alguns racistas. Isso é assustador! Sejamos nós, querido, instrumentos de transformação. Somos muitos e somos fortes. Siga firme aí e se precisar de alguma coisa pode contar comigo.

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