domingo, 17 de janeiro de 2021

Odeio os indiferentes - Reflexões sobre o Movimento Espírita - Por Lindemberg Castro

 


Odeio os indiferentes: reflexões sobre o movimento espírita

Por Lindemberg Castro - Coordenador do Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires

 

“Odeio” os indiferentes espíritas-religiosos, aqueles que do alto da sua superioridade forjada pela consciência de rebanho que os segue e os alça aos mais altos patamares de legisladores da vida civil e espiritual dos seus seguidores, mas ignoram completamente os sofrimentos e desigualdades desse mundo, em um verdadeiro esbaldar masoquista. O meio espírita está cheio desses indiferentes religiosos, que desenvolveram percepções cruéis sobre as leis de causalidade espíritas, para justificarem o injustificável da barbárie cotidiana que vivemos, sobretudo no Brasil, um país desgovernado e com o povo asfixiado, morrendo pela negligência deliberada da necropolítica instaurada com o apoio dos mais fundamentalistas meios espíritas.

Gramsci (2020) nos diz acerca dos indiferentes, que “indiferença é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida”, de modo que estar reencarnado nos exige tomada de posição frente aos desafios históricos e sociais em que estamos inseridos; precisamos de uma antropologia da reencarnação, para que entendamos o retorno à carne como algo não contemplativo. O moralismo, como nos diz Herculano Pires em “Educação para a Morte”, forjou e ainda forja todo o trabalho das religiões da morte, que ávidas por prosélitos, desenvolvem a sua estrutura de funcionamento não para o desenvolvimento da autonomia das pessoas, mas para mantê-las sob as rédeas, ou como nos fala Foucault, mantendo corpos dóceis para controle sobre a vida e sobre a morte. docilização dos corpos visa tornar as pessoas “boazinhas”, sem lhes dar um espaço de reflexão acerca de sua posição na sociedade ou no mundo.

Parte considerável do movimento espírita, atuando de forma quase unicamente religiosa ao longo de décadas, também ajudou a criar a “religião espírita da morte”, com toda a estrutura das religiões tradicionais “cristãs”, religiões essas que forjam o ápice das contradições entre indivíduo e sociedade, como bem nos alertaram Freud, Marx e Weber. Na religião espírita da morte toda a consolação espiritual advinda da pesquisa psicológica e espiritual de Kardec transformou-se em lei de talião fatalista e capacitista, que culpa a vítima pelo seu sofrimento, tal qual a estratégia do machismo estrutural que culpa a mulher pela violência que ela sofre, e o racismo estrutural que culpa o negro pela discriminação que sofre.

Na religião espírita da morte, o amor foi transformado em meritocracia necropolítica, sempre pronta a apontar o dedo para dizer: você é o único culpado pelo seu sofrimento, não importa que tipo de sofrimento. E assim parte do movimento espírita tem se empenhado em justificar toda sorte de tragédias humanas passadas e presentes, desde desastres naturais a ditaduras, passando por genocídios e escravizações; tragédias sociais (mesmo as que são completamente evitáveis) também são justificadas por essa lógica, e não nos surpreendamos caso surja algum texto “psicografado” dizendo que as pessoas que morreram asfixiadas em Manaus esta semana, em plena pandemia devido à negligência governamental, na verdade passaram por isso porque mereceram, pois na vida passada foram nazistas que trabalharam nas câmaras de gás.

É por esse tipo de pensamento, que encontramos mais espiritualidade em pensadores considerados ateus como Judith Butler, Angela Davis, Nietzsche, Sartre, Freud, pois em suas reflexões encontram-se questões fundamentais para a existência do Espírito encarnado. Se, por um lado, os conhecimentos espiritualistas, dentre eles o Espiritismo, revelaram ao ser humano a sua verdadeira condição existencial como Espírito, por outro lado, não podemos ignorar os conhecimentos próprios do desenvolvimento do pensamento e das ciências. Quando o Espiritualismo não conversa com a vida objetiva na matéria, torna-se apenas contemplação; Herculano já prevera a vocação do Espiritismo ao desenvolver o conceito que ele chama de Espiritualismo Científico, mas que na prática, é um aspecto incompreendido pela maior parte do movimento espírita até hoje.

Na religião espírita da morte, há médiuns que se comportam como sacerdotes que, de tempos em tempos vem ao público ditar regras de conduta moralista através de verdadeiros sermões neopentecostais, pautados em obediência e justificação de toda sorte de desigualdades. Em poucos dias vimos o médium Divaldo Franco dar mostras de sua alienação frente aos contextos sociais deste tempo, de variadas formas; foram publicadas duas mensagens supostamente psicografadas atribuídas aos espíritos Ismael e Bezerra de Menezes, e mais recentemente foi publicado artigo do próprio Divaldo se pronunciando sobre a legalização do aborto na Argentina, escreveremos a posteriori um artigo específico sobre esse último texto do médium baiano.

Das supostas mensagens de Ismael e Bezerra de Menezes, já amplamente refutadas por diversos artigos lúcidos de companheiros espíritas progressistas, temos apenas a lamentar que mensagens tão enviesadas, anticientíficas e de teorias da conspiração, sejam atribuídas a dois espíritos considerados de notória evolução. Partes das mensagens parecem ter saído diretamente de um grupo de whatsapp de extrema direita, em que lemos coisas do tipo: ataques às universidades públicas, desconfiança sobre a “velocidade” de produção da vacina contra COVID-19 e que apesar da vacina o sofrimento da humanidade continuará (?), insinuações de que o Coronavírus foi criado em laboratório, insinuações de que governantes desviaram recursos de combate à pandemia, além das já tradicionais táticas discursivas baseadas em ameaça, medo, culpa e promessas de dias melhores através da regeneração, o tão idolatrado período mágico que alguns espíritas esperam que se realize, mas sem nenhuma atuação direta contra as desigualdades sociais.

Definitivamente, não acreditemos em ninguém que ataca universidades públicas, seja encarnado ou desencarnado! Afinal de contas, quem mais produz ciência e pesquisa nesse país senão as instituições públicas?! Atacar instituições públicas é discurso que se alinha muito mais ao fascismo do que aos valores democráticos, pois o fascismo não suporta instituições autônomas, e parece que certos médiuns e espíritos também não suportam.

É curioso observar que nos referidos textos psicografados por Divaldo, não haja nenhuma referência à dramática situação que vivemos no Brasil atualmente, dominado pela necropolítica, sabotado pelos que o governam em notória política genocida; é também curioso observar que nenhum dos textos trata do aumento da desigualdade social em plena pandemia, em que os bilionários do mundo aumentaram em 31% a sua fortuna, aprofundando ainda mais as desigualdades a partir do capitalismo voraz; também é de se admirar, que nenhum texto ou posicionamento de Divaldo, seja agora ou anteriormente, faça referência ao adoecimento psíquico causado pela pandemia e aprofundado pelas feridas da desigualdade que a pandemia deixou a descoberto. Também é absolutamente surpreendente que nenhum dos textos cite as bases das pesquisas mundiais que mapearam os vírus das famílias SARS e MERS há anos, ao invés disso, um dos textos insinua que houve pressa na produção da vacina contra a COVID-19.

  Ao invés de tudo isso que citamos acima, os textos insinuam teorias da conspiração ou apenas reafirmam a causalidade necropolítica presente na justificação da pandemia enquanto castigo à humanidade atrasada. Parece que a reafirmação constante da nossa “inferioridade moral”, deve servir como alguma forma de mantra ou compensação psicológica para determinados espíritos e médiuns que normalmente se colocam acima da própria humanidade. É possível ser humano estando acima da humanidade?

Desses pontos de vista que temos aludido até aqui, sobre as recentes produções do médium Divaldo Franco, é ainda mais surpreendente quando lemos a seguinte passagem de uma de suas obras psicografadas, ditada por Joanna de Angelis:

O pensamento de homens e mulheres audaciosos como Allan Kardec, Charles Darwin, Karl Marx, Sigmund Freud, Marie Curie, Albert Einstein, produziu uma revolução de tal porte nos conceitos e costumes das criaturas, que até hoje tentam adaptar-se ao novo mundo por eles descoberto (FRANCO, p. 13). 

 Essa passagem marca a importância dos grandes pensadores e pensadoras da humanidade para conseguirmos avançar no “novo mundo por eles descoberto”; o conhecimento produzido pelas vias da reencarnação não pode ser deixado de lado frente aos conhecimentos espirituais, enquanto continuarmos a reencarnar nesse mundo, sob pena de apenas contemplarmos a nós mesmos em uma reforma íntima individualista e alienada, enquanto aguardamos o desencarne para termos direito a uma casa em uma colônia espiritual. Seria essa a nova forma de comércio de indulgências?

“A indiferença é o peso morto da história”, como nos alertou Gramsci, e cada vez que os espíritas se alienam pela indiferença ao mundo material e aos contextos históricos e sociais, cresce também a quantidade de espíritas que veem de outra forma, que querem estudar, debater e entender melhor as dinâmicas sociais, porque perceberam as contradições existentes em um movimento eminentemente religioso, que preconiza a caridade material como principal forma de fazer o bem, mas que parte dele se coloca contra as políticas públicas e sociais que beneficiam a população mais pobre.

O bem-estar social para todos e todas deveria ser entendido como um direito básico da existência do Espírito na reencarnação, mas, ao contrário disso, vemos espíritas e médiuns famosos atacando gratuitamente qualquer política pública de assistência social, de saúde pública universalizada, de educação pública de qualidade, de acesso à universidade, de produção científica, de produção e acesso às artes, políticas de cotas e de reparação histórica, etc., como se elas fossem danosas, quando na verdade elas visam o interesse público no mais alto nível, que é garantir a vida encarnada digna para todos e todas que precisam.

Em um momento em que parece que alguns espíritos e médiuns desdenham do conhecimento humano e da própria vida humana, e que em tese deveriam ter uma visão mais ampla das coisas porque teriam acesso a informações que muitas vezes não temos, pelo menos hoje nós brasileiros temos um alento depois de dias tão terríveis dominados pela política genocida; hoje, a primeira brasileira foi vacinada contra a COVID-19, Mônica Calazans, uma mulher negra, da linha frente de combate à pandemia, enfermeira, e que representa bem a diversidade do povo brasileiro.

As Ciências, e não apenas as ciências duras, a cada dia vencem o fundamentalismo religioso, seja lá de que matriz for, inclusive o de matriz espírita; agradeçamos a Deus o dom da inteligência, da pesquisa, do desenvolvimento do pensamento, porque só assim conseguiremos superar o obscurantismo medieval e o fascismo que de tempos em tempos tentam retornar entre nós, seja através de espíritos encarnados ou desencarnados.

Que tenhamos dias melhores e abençoados em nosso país, que assim seja!

 

REFERÊNCIAS

ANGELIS, Joanna de (Espírito). Dias gloriosos. Psicografado por Divaldo Franco. 4ª ed. Salvador: Livraria Espírita Alvorada Editora, 2010.

FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento da prisão. Rio de Janeiro: VOZES, 2009.

GRAMSCI, Antonio. Odeio os indiferentes: escritos de 1917. 1º ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

PIRES, Herculano. Educação para a Morte. 1º ed. São Bernardo do Campo: Correio Fraterno, 2016.


sexta-feira, 15 de janeiro de 2021

Roda de Conversa - Pequeno Manual Antirracista para Espíritas


No próximo dia 16/01, às 18h, estaremos com a Mocidade Espírita da Associação Espírita Vidal da Penha, conversando sobre o artigo Pequeno Manual Antirracista para Espíritas, do nosso coordenador Lindemberg Castro, para debatermos sobre a importância de práticas antirracistas e ao mesmo tempo pautarmos esse tema ainda invisibilizado no movimento espírita.

Para acessar o artigo, basta acessar: Pequeno Manual Antirracista para Espíritas