Odeio
os indiferentes: reflexões sobre o movimento espírita
Por Lindemberg Castro - Coordenador do Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires
“Odeio”
os indiferentes espíritas-religiosos, aqueles que do alto da sua superioridade
forjada pela consciência de rebanho que os segue e os alça aos mais altos
patamares de legisladores da vida civil e espiritual dos seus seguidores, mas
ignoram completamente os sofrimentos e desigualdades desse mundo, em um
verdadeiro esbaldar masoquista. O meio espírita está cheio desses indiferentes
religiosos, que desenvolveram percepções cruéis sobre as leis de causalidade
espíritas, para justificarem o injustificável da barbárie cotidiana que
vivemos, sobretudo no Brasil, um país desgovernado e com o povo asfixiado,
morrendo pela negligência deliberada da necropolítica instaurada com o apoio
dos mais fundamentalistas meios espíritas.
Gramsci
(2020) nos diz acerca dos indiferentes, que “indiferença
é abulia, é parasitismo, é covardia, não é vida”, de modo que estar
reencarnado nos exige tomada de posição frente aos desafios históricos e
sociais em que estamos inseridos; precisamos de uma antropologia da
reencarnação, para que entendamos o retorno à carne como algo não contemplativo.
O moralismo, como nos diz Herculano Pires em “Educação para a Morte”, forjou e
ainda forja todo o trabalho das religiões da morte, que ávidas por prosélitos,
desenvolvem a sua estrutura de funcionamento não para o desenvolvimento da
autonomia das pessoas, mas para mantê-las sob as rédeas, ou como nos fala
Foucault, mantendo corpos dóceis para controle sobre a vida e sobre a morte. A docilização dos corpos visa tornar as pessoas “boazinhas”, sem lhes
dar um espaço de reflexão acerca de sua posição na sociedade ou no mundo.
Parte
considerável do movimento espírita, atuando de forma quase unicamente religiosa
ao longo de décadas, também ajudou a criar a “religião espírita da morte”, com
toda a estrutura das religiões tradicionais “cristãs”, religiões essas que
forjam o ápice das contradições entre indivíduo e sociedade, como bem nos
alertaram Freud, Marx e Weber. Na religião espírita da morte toda a consolação
espiritual advinda da pesquisa psicológica e espiritual de Kardec
transformou-se em lei de talião fatalista e capacitista, que culpa a vítima
pelo seu sofrimento, tal qual a estratégia do machismo estrutural que culpa a
mulher pela violência que ela sofre, e o racismo estrutural que culpa o negro
pela discriminação que sofre.
Na
religião espírita da morte, o amor foi transformado em meritocracia
necropolítica, sempre pronta a apontar o dedo para dizer: você é o único
culpado pelo seu sofrimento, não importa que tipo de sofrimento. E assim parte
do movimento espírita tem se empenhado em justificar toda sorte de tragédias
humanas passadas e presentes, desde desastres naturais a ditaduras, passando
por genocídios e escravizações; tragédias sociais (mesmo as que são
completamente evitáveis) também são justificadas por essa lógica, e não nos
surpreendamos caso surja algum texto “psicografado” dizendo que as pessoas que
morreram asfixiadas em Manaus esta semana, em plena pandemia devido à
negligência governamental, na verdade passaram por isso porque mereceram, pois
na vida passada foram nazistas que trabalharam nas câmaras de gás.
É
por esse tipo de pensamento, que encontramos mais espiritualidade em pensadores
considerados ateus como Judith Butler, Angela Davis, Nietzsche, Sartre, Freud, pois em suas reflexões encontram-se
questões fundamentais para a existência do Espírito encarnado. Se, por um lado,
os conhecimentos espiritualistas, dentre eles o Espiritismo, revelaram ao ser
humano a sua verdadeira condição existencial como Espírito, por outro lado, não
podemos ignorar os conhecimentos próprios do desenvolvimento do pensamento e
das ciências. Quando o Espiritualismo não conversa com a vida objetiva na
matéria, torna-se apenas contemplação; Herculano já prevera a vocação do
Espiritismo ao desenvolver o conceito que ele chama de Espiritualismo
Científico, mas que na prática, é um aspecto incompreendido pela maior parte do
movimento espírita até hoje.
Na
religião espírita da morte, há médiuns que se comportam como sacerdotes que, de
tempos em tempos vem ao público ditar regras de conduta moralista através de
verdadeiros sermões neopentecostais, pautados em obediência e justificação de
toda sorte de desigualdades. Em poucos dias vimos o médium Divaldo Franco dar
mostras de sua alienação frente aos contextos sociais deste tempo, de variadas
formas; foram publicadas duas mensagens supostamente psicografadas atribuídas
aos espíritos Ismael e Bezerra de Menezes, e mais recentemente foi publicado
artigo do próprio Divaldo se pronunciando sobre a legalização do aborto na
Argentina, escreveremos a posteriori um artigo específico sobre esse último texto
do médium baiano.
Das
supostas mensagens de Ismael e Bezerra de Menezes, já amplamente refutadas por
diversos artigos lúcidos de companheiros espíritas progressistas, temos apenas
a lamentar que mensagens tão enviesadas, anticientíficas e de teorias da
conspiração, sejam atribuídas a dois espíritos considerados de notória
evolução. Partes das mensagens parecem ter saído diretamente de um grupo de
whatsapp de extrema direita, em que lemos coisas do tipo: ataques às universidades
públicas, desconfiança sobre a “velocidade” de produção da vacina contra
COVID-19 e que apesar da vacina o sofrimento da humanidade continuará (?),
insinuações de que o Coronavírus foi criado em laboratório, insinuações de que
governantes desviaram recursos de combate à pandemia, além das já tradicionais
táticas discursivas baseadas em ameaça, medo, culpa e promessas de dias
melhores através da regeneração, o tão idolatrado período mágico que alguns
espíritas esperam que se realize, mas sem nenhuma atuação direta contra as
desigualdades sociais.
Definitivamente, não acreditemos em ninguém
que ataca universidades públicas, seja encarnado ou desencarnado!
Afinal de contas, quem mais produz ciência e pesquisa nesse país senão as
instituições públicas?! Atacar instituições públicas é discurso que se alinha
muito mais ao fascismo do que aos valores democráticos, pois o fascismo não
suporta instituições autônomas, e parece que certos médiuns e espíritos também
não suportam.
É
curioso observar que nos referidos textos psicografados por Divaldo, não haja
nenhuma referência à dramática situação que vivemos no Brasil atualmente,
dominado pela necropolítica, sabotado pelos que o governam em notória política
genocida; é também curioso observar que nenhum dos textos trata do aumento da
desigualdade social em plena pandemia, em que os bilionários do mundo
aumentaram em 31% a sua fortuna, aprofundando ainda mais as desigualdades a
partir do capitalismo voraz; também é de se admirar, que nenhum texto ou
posicionamento de Divaldo, seja agora ou anteriormente, faça referência ao
adoecimento psíquico causado pela pandemia e aprofundado pelas feridas da
desigualdade que a pandemia deixou a descoberto. Também é absolutamente
surpreendente que nenhum dos textos cite as bases das pesquisas mundiais que
mapearam os vírus das famílias SARS e MERS há anos, ao invés disso, um dos
textos insinua que houve pressa na produção da vacina contra a COVID-19.
Ao invés de tudo isso que citamos acima, os
textos insinuam teorias da conspiração ou apenas reafirmam a causalidade
necropolítica presente na justificação da pandemia enquanto castigo à
humanidade atrasada. Parece que a reafirmação constante da nossa “inferioridade
moral”, deve servir como alguma forma de mantra ou compensação psicológica para
determinados espíritos e médiuns que normalmente se colocam acima da própria
humanidade. É possível ser humano estando acima da humanidade?
Desses
pontos de vista que temos aludido até aqui, sobre as recentes produções do
médium Divaldo Franco, é ainda mais surpreendente quando lemos a seguinte
passagem de uma de suas obras psicografadas, ditada por Joanna de Angelis:
O pensamento de homens e mulheres audaciosos como Allan Kardec, Charles Darwin, Karl Marx, Sigmund Freud, Marie Curie, Albert Einstein, produziu uma revolução de tal porte nos conceitos e costumes das criaturas, que até hoje tentam adaptar-se ao novo mundo por eles descoberto (FRANCO, p. 13).
Essa passagem marca a importância dos grandes pensadores e pensadoras da humanidade para conseguirmos avançar no “novo mundo por eles descoberto”; o conhecimento produzido pelas vias da reencarnação não pode ser deixado de lado frente aos conhecimentos espirituais, enquanto continuarmos a reencarnar nesse mundo, sob pena de apenas contemplarmos a nós mesmos em uma reforma íntima individualista e alienada, enquanto aguardamos o desencarne para termos direito a uma casa em uma colônia espiritual. Seria essa a nova forma de comércio de indulgências?
“A indiferença é o peso
morto da história”, como nos alertou Gramsci, e cada vez que os espíritas se
alienam pela indiferença ao mundo material e aos contextos históricos e
sociais, cresce também a quantidade de espíritas que veem de outra forma, que
querem estudar, debater e entender melhor as dinâmicas sociais, porque
perceberam as contradições existentes em um movimento eminentemente religioso,
que preconiza a caridade material como principal forma de fazer o bem, mas que
parte dele se coloca contra as políticas públicas e sociais que beneficiam a população
mais pobre.
O bem-estar social para
todos e todas deveria ser entendido como um direito básico da existência do
Espírito na reencarnação, mas, ao contrário disso, vemos espíritas e médiuns
famosos atacando gratuitamente qualquer política pública de assistência social,
de saúde pública universalizada, de educação pública de qualidade, de acesso à
universidade, de produção científica, de produção e acesso às artes, políticas
de cotas e de reparação histórica, etc., como se elas fossem danosas, quando na
verdade elas visam o interesse público no mais alto nível, que é garantir a
vida encarnada digna para todos e todas que precisam.
Em um momento em que parece
que alguns espíritos e médiuns desdenham do conhecimento humano e da própria
vida humana, e que em tese deveriam ter uma visão mais ampla das coisas porque
teriam acesso a informações que muitas vezes não temos, pelo menos hoje nós
brasileiros temos um alento depois de dias tão terríveis dominados pela
política genocida; hoje, a primeira brasileira foi vacinada contra a COVID-19,
Mônica Calazans, uma mulher negra, da linha frente de combate à pandemia,
enfermeira, e que representa bem a diversidade do povo brasileiro.
As Ciências, e não apenas as
ciências duras, a cada dia vencem o fundamentalismo religioso, seja lá de que
matriz for, inclusive o de matriz espírita; agradeçamos a Deus o dom da
inteligência, da pesquisa, do desenvolvimento do pensamento, porque só assim
conseguiremos superar o obscurantismo medieval e o fascismo que de tempos em
tempos tentam retornar entre nós, seja através de espíritos encarnados ou
desencarnados.
Que tenhamos dias melhores e
abençoados em nosso país, que assim seja!
REFERÊNCIAS
ANGELIS, Joanna de (Espírito). Dias
gloriosos. Psicografado por Divaldo Franco. 4ª ed. Salvador: Livraria Espírita Alvorada Editora, 2010.
FOUCAULT, Michel. Vigiar e Punir: nascimento
da prisão. Rio de Janeiro: VOZES, 2009.
GRAMSCI, Antonio. Odeio os indiferentes:
escritos de 1917. 1º ed. São Paulo: Boitempo, 2020.
PIRES, Herculano. Educação para a Morte. 1º
ed. São Bernardo do Campo: Correio Fraterno, 2016.
Excelente reflexão, dialoga intensamente com os desafios da Existência concreta do Espírito encarnado.
ResponderExcluirGratidão, minha amiga Vânia! Sua análise lúcida é sempre muito importante para mim, abraços!
Excluir"Uma nova ordem de coisas tende a estabelecer-se, e os homens, que mais opostos lhe são, para ela trabalham a seu mau grado. " item 6
ResponderExcluir"Aliás, todos sabem quanto ainda deixa a desejar a atual ordem de coisas." Item 6
"Mas, uma mudança tão radical como a que se está elaborando não pode realizar-se sem comoções. Há, inevitavelmente, luta de ideias."
"Hoje, não são mais as entranhas do planeta que se agitam: são as da Humanidade" Item 7
A Gênese cap. XVIII
Sinais dos tempos.
Gratidão pelo comentário, amiga Eurilene! Abraços! :)
ExcluirMuito boa a reflexão Lindemberg. De fato o Movimento espírita está precisando refletir seriamente sobre essa postura "messiânica" que certas figuras acabam por transparecer e as pessoas aceitam! Buscam nas pessoas os papas do espiritismo. Kardec mesmo escreve que devemos refletir e analisar cada questão e não aceitar simplesmente por que A ou B define assim; está na essência de Kardec e do espiritismo isso.
ResponderExcluirGratidão pelo seu assertivo comentário, Lucas! De fato, o espiritismo passou a ser permeado pelo equivalente à ideia de sacerdotes, que detém grande poder de influência sobre os espíritas; infelizmente a invasão roustanguista no movimento espírita causou muitos danos em detrimento da autonomia, e em favor da heteronomia presente na matriz religiosa mais tradicional.
ResponderExcluirBelíssimo artigo caro amigo Lindemberg! Deveria ser lido e estudado em todas as casas espíritas brasileiras, como autocrítica e possibilidade de alguma mudança consciente. Infelizmente o movimento hegemônico é indiferente aos problemas sociais e se considera um povo eleito em terra prometida.
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