DA HIPERATIVIDADE SOCIAL AO CANSAÇO DEPRESSIVO
por Marcio Sales Saraiva, escritor, sociólogo e cientista político
A leitura do livro “Sociedade do
cansaço” (2ª edição ampliada – Petrópolis, RJ: Vozes, 2019) do filósofo
Byung-Chul Han (tradução de Enio Paulo Giachini) trouxe-me muitos insights
sobre este tempo histórico que estamos vivendo. Eu fiz algumas anotações breves
e destaquei algumas passagens que me marcaram muito. É isso que compartilho com
você. Não é uma resenha, são apenas fragmentos sobre a doença que se tornou
nosso mundo, nós mesmos.
Antes de começar, saiba que
Byung-Chul Han nasceu na Coreia do Sul, mas fixou-se na Alemanha, onde estudou
Filosofia na Universidade de Friburgo e Literatura Alemã e Teologia na
Universidade de Munique. Em 1994, doutorou-se em Friburgo com uma tese sobre
Martin Heidegger. É professor de Filosofia e Estudos Culturais na Universidade
de Berlim. Ok, o cara estudou bastante, mas vamos ao que ele está pensando
sobre a vida.
“A sociedade disciplinar de Foucault,
feita de hospitais, asilos, presídios, quartéis e fábricas, não é mais a
sociedade de hoje. Em seu lugar, há muito tempo, entrou uma outra sociedade, a
saber, uma sociedade de academias de fitness, prédios de escritórios, bancos,
aeroportos, shopping centers e laboratórios de genética. A sociedade do século
XXI não é mais a sociedade disciplinar, mas uma sociedade de desempenho. Também
seus habitantes não se chamam mais “sujeitos da obediência”, mas sujeitos de
desempenho e produção. São empresários de si mesmos.”
“Alain Ehrenberg localiza a depressão
na passagem da sociedade disciplinar para a sociedade de desempenho: ‘A carreira
da depressão começa no instante em que o modelo disciplinar de controle
comportamental, que, autoritária e proibitivamente, estabeleceu seu papel às
classes sociais e aos dois gêneros, foi abolido em favor de uma norma que
incita cada um à iniciativa pessoal: em que cada um se comprometa a tornar-se
ele mesmo. [...] O depressivo não está cheio, no limite, mas está esgotado pelo
esforço de ter de ser ele mesmo’”.
“O que causa a depressão do
esgotamento não é o imperativo de obedecer apenas a si mesmo, mas a pressão de
desempenho. Vista a partir daqui, a Síndrome de Burnout não expressa o si-mesmo
esgotado, mas antes a alma consumida. Segundo Ehrenberg, a depressão se expande
ali onde os mandatos e as proibições da sociedade disciplinar dão lugar à responsabilidade
própria e à iniciativa. O que torna doente, na realidade, não é o excesso de
responsabilidade e iniciativa, mas o imperativo do desempenho como um novo
mandato da sociedade pós-moderna do trabalho.”
“(...) o sujeito de desempenho se
entrega à liberdade coercitiva ou à livre coerção de maximizar o desempenho. O
excesso de trabalho e desempenho agudiza-se numa autoexploração. Essa é mais
eficiente que uma exploração do outro, pois caminha de mãos dadas com o
sentimento de liberdade. O explorador é ao mesmo tempo o explorado. Agressor e
vítima não podem mais ser distinguidos. Essa autorreferencialidade gera uma
liberdade paradoxal que, em virtude das estruturas coercitivas que lhe são
inerentes, se transforma em violência. Os adoecimentos psíquicos da sociedade
de desempenho são precisamente as manifestações patológicas dessa liberdade
paradoxal.”
“Essa atenção dispersa
(hyperattention) se caracteriza por uma rápida mudança de foco entre diversas
atividades, fontes informativas e processos. E visto que ele tem uma tolerância
bem pequena para o tédio, também não admite aquele tédio profundo que não deixa
de ser importante para um processo criativo. Walter Benjamin chama a esse tédio
profundo de um “pássaro onírico, que choca o ovo da experiência”. Se o sono
perfaz o ponto alto do descanso físico, o tédio profundo constitui o ponto alto
do descanso espiritual. Pura inquietação não gera nada de novo. Reproduz e
acelera o já existente. Benjamin lamenta que esse ninho de descanso e de
repouso do pássaro onírico está desaparecendo cada vez mais na modernidade.”
A barbárie da hiperatividade no capitalismo pós-moderno...
“Mas a arte é uma ‘ação expressiva’.
O próprio Nietzsche, que substituiu o ser pela vontade, sabe que a vida humana
finda numa hiperatividade mortal se dela for expulso todo elemento
contemplativo: ‘Por falta de repouso, nossa civilização caminha para uma nova
barbárie. Em nenhuma outra época os ativos, isto é, os inquietos, valeram
tanto. Assim, pertence às correções necessárias a serem tomadas quanto ao
caráter da humanidade fortalecer em grande medida o elemento contemplativo’”.
“Precisamente frente à vida desnuda,
que acabou se tornando radicalmente transitória, reagimos com hiperatividade,
com a histeria do trabalho e da produção. Também o aceleramento de hoje tem
muito a ver com a carência de ser. A sociedade do trabalho e a sociedade do
desempenho não são uma sociedade livre. Elas geram novas coerções. A dialética
de senhor e escravo está, não em última instância, para aquela sociedade na qual
cada um é livre e que seria capaz também de ter tempo livre para o lazer. Leva
ao contrário a uma sociedade do trabalho, na qual o próprio senhor se
transformou num escravo do trabalho. Nessa sociedade coercitiva, cada um
carrega consigo seu campo de trabalho. A especificidade desse campo de trabalho
é que somos ao mesmo tempo prisioneiro e vigia, vítima e agressor. Assim,
acabamos explorando a nós mesmos. Com isso, a exploração é possível mesmo sem
senhorio.”
Esta aceleração, a hiperatividade, é
fruto da coerção do sistema sociocultural e político vivido na sociedade do
desempenho. Ser livre, nesse contexto, significa dizer não a essa maquinaria do
agir. É através da negatividade que podemos colocar algum freio à ordem do
capital e seu paradigma de desempenho/cansaço.
“Hoje, vivemos num mundo muito pobre
de interrupções, pobre de entremeios e tempos intermédios. No aforismo ‘A
principal carência do homem ativo’, escreve Nietzsche: ‘Aos ativos falta
usualmente a atividade superior [...] e nesse sentido eles são preguiçosos.
[...] Os ativos rolam como rola a pedra, segundo a estupidez da mecânica’”.
A ira/indignação — se preferir, a
revolução social — exige freio, tempo, crítica, mudança...
“A ira (...) coloca definitivamente
em questão o presente. Ela pressupõe uma pausa interruptora no presente. É
nisso que ela se distingue da irritação. A dispersão geral que marca a
sociedade de hoje não permite que surja a ênfase e a energia da ira. A ira é
uma capacidade que está em condições de interromper um estado, e fazer com que
se inicie um novo estado. Hoje, cada vez mais ela cede lugar à irritação ou ao
enervar-se, que não podem produzir nenhuma mudança decisiva.”
“A negatividade do não-para é também
um traço essencial da contemplação. Na meditação zen, por exemplo, tenta-se
alcançar a negatividade pura do não-para, isto é, o vazio, libertando-se de
tudo que aflui e se impõe. Assim é um processo extremamente ativo, e algo bem
distinto que passividade. É um exercício para alcançar em si um ponto de
soberania, de ser centro.”
O zen é estruturalmente anticapitalista?
“A coação de desempenho força-o a
produzir cada vez mais. Assim, jamais alcança um ponto de repouso da
gratificação. Vive constantemente num sentimento de carência e de culpa. E
visto que, em última instância, está concorrendo consigo mesmo, procura superar
a si mesmo até sucumbir. Sofre um colapso psíquico, que se chama de burnout
(esgotamento). O sujeito do desempenho se realiza na morte. Realizar-se e autodestruir-se,
aqui, coincidem.”
“O responsável pela depressão, na
qual acaba desembocando o burnout, é antes de mais nada a autorrelação
sobre-exaltada, sobremodulada, narcisista, que acaba adotando traços
depressivos. O sujeito de desempenho esgotado, depressivo está, de certo modo,
desgastado consigo mesmo. Está cansado, esgotado de si mesmo, de lutar consigo
mesmo. Totalmente incapaz de sair de si, estar lá fora, de confiar no outro, no
mundo, fica se remoendo, o que paradoxalmente acaba levando a autoerosão e ao
esvaziamento. Desgasta-se correndo numa roda de hamster que gira cada vez mais
rápida ao redor de si mesma.”
Pior do que uma sociedade onde os
indivíduos líquidos e desatrelados dos laços sociais de grupo/classe concorrem
entre si é uma sociedade do desempenho onde os indivíduos concorrem consigo
mesmo ou contra si, cindidos.
“Problemática não é a concorrência
entre os indivíduos, mas o fato de tomarem a si mesmos como referência e de
aguçar neles, assim, sua concorrência absoluta. O sujeito de desempenho
concorre consigo mesmo e, sob uma coação destrutiva, se vê forçado a superar
constantemente a si próprio. Essa autocoação, que se apresenta como liberdade,
acaba sendo fatal para ele. O burnout é o resultado da concorrência absoluta.”
“É assim que doenças psíquicas como o
burnout ou a depressão, que são as enfermidades centrais do século XXI,
apresentam todas elas um traço altamente agressivo a si mesmo. A gente faz
violência a si mesmo e explora a si mesmo. Em lugar da violência causada por um
fator externo, entra a violência autogerada, que é mais fatal do que aquela,
pois a vítima dessa violência imagina ser alguém livre.”
O capitalismo de desempenho coloca a
sobrevivência como meta, abolindo a ideia aristotélica de boa vida. O
fundamental não é viver ou bem viver, mas sobreviver no interior do sistema e,
sorrindo, pois ninguém suporta tristezas.
“A economia capitalista absolutiza a
sobrevivência. Ela se nutre da ilusão de que mais capital gera mais vida, que
gera mais capacidade para viver. A divisão rígida, rigorosa entre vida e morte
marca a própria vida com uma rigidez assustadora. A preocupação por uma boa
vida dá lugar à histeria pela sobrevivência. A redução da vida a processos
biológicos, vitais, deixa a vida desnuda, despe-a de toda narratividade. Retira
à vida a vivacidade, que a vida é algo muito mais complexo que mera vitalidade
e saúde. A mania da busca por saúde surge sempre que a vida se tornou desnuda,
como uma cédula de dinheiro, e quando todo conteúdo narrativo se esvaziou.”
A mudança desse modelo de sociedade passa pela festa, pela celebração,
pelo tempo contra o totalitarismo do trabalho e do desempenho.
“Talvez devêssemos reconquistar
aquela divindade, aquela festividade divina, em vez de continuarmos sendo
escravos do trabalho e do desempenho. Deveríamos reconhecer que hoje perdemos
aquela festividade, aquele tempo de celebração na medida em que absolutizamos
trabalho, desempenho e produção. O tempo de trabalho que hoje está se
universalizando destrói aquela época celebrativa como tempo de festa.”
“Hoje em dia o tempo de celebração
desapareceu totalmente em prol do tempo do trabalho, que acabou se tornando
totalitário. A própria pausa se conserva implícita no tempo de trabalho. Ela
serve apenas para nos recuperar do trabalho, para poder continuar funcionando.”
“Na época do relógio de ponto era
possível estabelecer uma clara separação entre trabalho e não trabalho. Hoje
edifícios de trabalho e salas de estar estão todos misturados. Com isso
torna-se possível haver trabalho em qualquer lugar e a qualquer hora. Laptop e
smartphone formam um campo de trabalho móvel.”
“A sociedade atual do sobreviver que
absolutiza o sadio, destrói precisamente o belo. A mera vida sadia, que hoje
adota a forma do sobreviver histérico, converte-se no morto; sim, num
morto-vivo. Nós nos transformamos em zumbis saudáveis e fitness, zumbis do
desempenho e do botox. Assim hoje, estamos por demais mortos para viver, e por
demais vivos para morrer.”
Não existe política se não há tempo,
criatividade, alternativas, capacidade de construir coisas diferentes. É
preciso espaço de criação para que o agir político se faça significativo e não
mera administração de dados estatísticos na perspectiva de um eterno e linear
processo de crescimento e expansão.
“A salvação do belo é igualmente o
resgate do político. Hoje parece que a política vive ainda apenas de decretos
de urgência. Já não é livre. Isto quer dizer: Hoje já não há política. Se ela
já não admite nenhuma alternativa, acaba se aproximando de uma ditadura, da
ditadura do capital. Os políticos, que hoje se degradaram em capangas do
sistema, que no melhor dos casos são hábeis administradores da economia
doméstica ou contadores, não são mais políticos no sentido aristotélico.”
Este não é um livro
necessário?
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O Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires agradece ao escritor Marcio Sales Saraiva, pela autorização de veicularmos o seu texto em nosso site, um texto que elenca reflexões fundamentais para o nosso tempo, e que vem ao encontro dos estudos desenvolvidos pelo IFEHP em torno da obra de Byung-Chul Han, incluindo um minicurso que iremos ministrar sobre aproximações do seu pensamento com o de Herculano Pires, no mês de maio.
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