Neste
dia 21 de Março, é o Dia Internacional contra
a Discriminação Racial, um dia alusivo, um novo convite a repensarmos as
nossas práticas cotidianas, as nossas relações e os nossos preconceitos
estruturais. A data foi instituída pela Organização das Nações Unidas, para
lembrar as vítimas que sucumbiram ou se feriram em um protesto no dia 21 de
Março de 1960, em Johanesburgo, na África do Sul. O protesto seguia pacífico, um
protesto legítimo contra a delimitação de circulação da população negra; mas,
em se tratando do regime repressor em pleno Apartheid, em vigor no país desde
1948, a polícia abriu fogo contra a multidão, matando 69 pessoas e ferindo
outras 186.
Hoje
também é a data internacional alusiva à importância das Florestas para a
biodiversidade no mundo e para a manutenção da vida, instituída também pela
ONU, em 2012.
Daí
você pode estar se perguntando o motivo de estarmos aproximando essas duas
datas em um mesmo texto; apesar da consciência das datas, poderiam ser temas
completamente distantes de se traçar qualquer paralelo. Mas, com os
experimentos sociais que as redes nos permitem atualmente, é possível perceber
que, para parte do Movimento Espírita Brasileiro em seus setores mais
conservadores, aparentemente o Dia Internacional das Florestas é importante e
necessário, enquanto o Dia Internacional contra a Discriminação Racial se
configura como algo sem importância, porque afinal, “somos todos seres humanos”.
Em
postagens que hoje foram veiculadas na página oficial da Federação Espírita
Brasileira, no facebook, a instituição faz alusão à importância das duas datas,
inclusive, na postagem sobre a luta contra a discriminação racial, cita a
seguinte passagem do Evangelho Segundo o Espiritismo, de Allan Kardec (2009): “prescreve o respeito aos direitos de cada um, como cada um deseja que se
respeitem os seus”;
esse trecho nada mais é do que a reafirmação dos ensinamentos de Jesus, que nos
orientou a desejar e fazer para os outros o mesmo que desejamos e fazermos para
nós mesmos. É um princípio de amor e de fraternidade!
Contudo, parece que para alguns espíritas,
qualquer perspectiva de amor e de fraternidade não se relaciona com a sua visão
de mundo, criando um sistema alienante em que os ensinamentos espíritas são
apenas teóricos e de aplicabilidade puramente individualista, e não possuem
qualquer relação com práticas transformadoras no mundo. Basta passar o olhar
nos comentários das duas postagens, para perceber que parte do movimento
espírita não consegue dialogar com a realidade puramente humana, simplesmente
não consegue aplicar ao mundo uma visão espírita da realidade.
Na postagem sobre a luta contra a discriminação
racial, vemos de tudo, discursos moralistas, frases generalistas de que “somos
todos humanos” ou que “todas as vidas importam”, vemos também algumas pessoas
afirmando que a FEB está fugindo do “foco” ao fazer uma postagem com esse
conteúdo, ou ainda, encontramos gente afirmando que esse tipo de data “comemorativa”
reforça o racismo. Em contraposição a tantos pensamentos enviesados, na
postagem sobre o dia internacional das florestas, todos os comentários são a
favor da preservação das florestas; não há nenhum comentário do tipo: “montanhas
também importam”, ou “somos todos Natureza”.
Ou seja, aparentemente, para alguns espíritas,
as diversidades humanas não merecem respeito senão a partir de algumas
diversidades apenas, e qualquer tentativa de retirar da invisibilidade temas
importantes para grupos historicamente excluídos, é automaticamente alçado à
categoria de heresia, como se o próprio Espiritismo não fosse uma filosofia
preocupada com TODAS as questões sociais, com TODAS as diversidades humanas.
O racismo expresso nos comentários da postagem
a que nos referimos acima, e em outros momentos, como na postagem em alusão ao
Dia da Consciência Negra de 2020, feita pela própria FEB, nos coloca uma triste
realidade acerca de parte do movimento espírita: há racismo escancarado em nome
de ideologias excludentes, defendido por espíritas que, apesar de se dizerem
cristãos, não conseguem aplicar ao mundo os preceitos básicos de fraternidade,
de empatia, de acolher o outro a partir de seus desafios existenciais.
Há espíritas que se comportam como se no mundo
não existissem desigualdades, preconceitos, injustiças, e demais problemáticas
que atingem diretamente aos espíritos encarnados, e que, portanto, deveriam ser
alvo da preocupação também dos espíritas, uma vez que Kardec deixou claro que a
transformação da realidade não se dará somente pelo progresso pessoal impresso
na tão famosa “reforma íntima”.
Kardec (2001), em “A Gênese”, deixa muito claro
o objetivo principal da reencarnação frente aos processos transformadores no
mundo,
Com a reencarnação, caem os preconceitos de
raça e de casta, de vez que o mesmo Espírito pode renascer rico ou pobre,
grão-senhor ou proletário, patrão ou subordinado, livre ou escravo, homem ou
mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da
escravatura, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que
saliente, pela lógica, o fato material da reencarnação. Portanto, se a
reencarnação funda sobre uma lei da Natureza o princípio da fraternidade
universal, ela fundamenta sobre a mesma lei o da igualdade dos direitos sociais
e, por conseguinte, o da liberdade (p. 25).
Ou seja, Kardec deixa claro que sem igualdade de direitos sociais, e sem a liberdade inerente a esses direitos, não há como pensarmos em progresso; Kardec fala de uma fraternidade universal, que, somente pode ser construída se tivermos “olhos para ver” o mundo com as suas contradições, e trabalharmos firmemente por um mundo melhor, mais justo, mais acolhedor e mais amoroso. Herculano Pires, Humberto Mariotti e Deolindo Amorim reforçaram o pensamento de Kardec quando nos afirmaram que ao lado da transformação pessoal é preciso ajuntar a transformação social, uma vez que as desigualdades são estruturais, são milenares, e não vão acabar como em um passe de mágica.
Herculano
Pires (1969) foi um dos pensadores que sempre denunciaram os aspectos
alienantes do movimento espírita em não dialogar com a realidade, e nem com seu
tempo histórico e social. Ele chama o movimento espírita de misoneísta, ou
seja, avesso a qualquer transformação profunda da realidade. E acrescenta:
Os
espíritas que temem os problemas sociais e políticos, (...) são misoneístas extraviados
no seio de um movimento espiritual renovador do mundo. Mas a participação espírita
não é partidária, nem é política no sentido comum do termo. A revolução
espírita não é um ato de violência, nem pode aceitar a violência, que é a
negação do princípio de fraternidade, um crime contra o amor. Só a consciência
da responsabilidade doutrinária, que resulta do conhecimento e da vivência da
doutrina espírita, arma o homem para enfrentar a nova perspectiva política e
revolucionária do espiritismo” (p. 15).
Humberto Mariotti (1969) nos afirma que, “a ação solidária é transformadora dos sentimentos, e os sentimentos são transformadores da realidade social”; mas, aparentemente o movimento espírita está longe de compreender a segunda parte dessa reflexão, que diz respeito à transformação da realidade social. Ou seja, a frase pomposa e generalista que diz “somos todos espíritos, somos todos seres humanos”, poderia ser facilmente substituída por “somos todos misoneístas, odiamos mudanças estruturais”.
Diante
desse quadro, é importante nos perguntar sobre os motivos que conduziram o
movimento espírita em sua ala mais conservadora, a um discurso de neutralidade
político-social, que simplesmente invisibiliza as vidas das pessoas, que
simplesmente coloca na conta das leis de causalidade toda a explica das desigualdades,
mesmo que em “O Livro dos Espíritos” haja a análise clara de que as
desigualdades sociais foram criadas pelos espíritos encarnados, e estes é que
precisam modifica-las.
Sinuê
Miguel (2020) aponta algumas possibilidades para explicar a postura alienante
da realidade social por parte do movimento espírita: discurso de neutralidade
política, mas que na prática beneficia os sistemas de opressão vigentes,
negação do pensamento social espírita por conta do perfil ideológico dos
espíritas enquanto pertencentes à classe média, e a negação de qualquer relação
entre Espiritismo e Socialismo, embora pensadores do quilate de Leon Denis,
Herculano Pires e Humberto Mariotti, tenham produzido vasto material sobre essa
relação.
Célia
Arribas (2019) inclui ainda outras questões importantes, além das citadas acima
por Miguel, incluindo outros recortes que explicam a alienação do movimento
espírita para as realidades sociais:
O
espiritismo, que poderia ser, pelos seus princípios, protagonista na promoção
da igualdade, da fraternidade e da justiça social, se limitou, por conta de uma
visão paralisante, confortável e conformista de mundo, que está na origem
social dos espíritas – provenientes em sua grande maioria da classe média
branca, escolarizada e heterossexual –, a uma explicação reencarnacionista da
meritocracia, das desigualdades sociais (se há miseráveis e vulneráveis no
mundo, eles e elas nada mais fazem do que “pagar” por seus erros de vidas
passadas) e da salvação pela caridade material pontual, de cunho
assistencialista, em plena conformidade, portanto, com o pensamento conservador
e reacionário.
Nós espíritas, temos muito trabalho pela frente em relação a todas as questões sociais, e para colaborarmos com o processo de retirar da invisibilidade a questão da luta antirracista, precisamos estudar mais a respeito, e produzirmos: textos, cursos, seminários, artigos, livros, etc., pautando esses temas. Precisamos entender que vivemos no mundo material e precisamos lidar com as questões sociais e históricas do nosso tempo. Alguns espíritas se utilizam de argumentos como “ah, mas somos todos iguais perante Deus”, ou “somos todos Espíritos”; as duas sentenças estão corretas em seu sentido essencial, mas não criam contextos com os processos reencarnatórios.
É
na reencarnação que travamos as mais árduas batalhas morais e existenciais, e
além das nossas questões individuais para darmos conta, é no mundo material que
enfrentamos as injustiças e desigualdades, o preconceito, os processos anticivilizatórios,
a necropolítica, e toda sorte de mazelas que, cabe a nós construirmos práticas
e discursos que transformem para melhor este mundo. Nenhum conceito espírita
serve para secar o nosso coração às dores dos outros, e nem para cruzar os
nossos braços frente às desigualdades sociais. A práxis máxima do Espiritismo é
o amor, sentimento que precisa ser transformado em ação de amparo, de empatia e
de acolhimento a quem sofre; é a FILOSOFIA DA AÇÃO, a que se refere Herculano
Pires, no Prólogo do livro de Humberto Mariotti, “O homem e a sociedade numa
nova civilização”.
Para
finalizarmos esse nosso breve artigo, exercitando as perguntas filosóficas como
força motriz de nos questionarmos sobre a realidade, perguntamos: por que, uma
data alusiva à discriminação racial incomoda tanto certos espíritas, mas o
racismo não incomoda no mesmo nível? Por que parte do movimento espírita trata
a luta antirracista como ideologia, mas propaga em alto e bom som, discursos
fascistas da necropolítica que hoje governa o Brasil? Por que para parte do
movimento espírita, a empatia frente às dores do outro só servem para
desenvolver projetos sociais caritativos, mas não para defender vida digna a
todos e a todas?
Sejamos
todos antirracistas, nos convida Djamila Ribeiro (2019)!
São
questões que precisamos pensar sobre elas, expô-las, e à moda como Herculano
Pires sempre fez em toda a sua vida, precisamos denunciar essas práticas
racistas e preconceituosas que correm a mancheias em setores conservadores do
movimento espírita, afinal, o Espiritismo é uma filosofia progressista, e não
para no tempo, malgrado o fundamentalismo religioso que impera em parte do
movimento.
Ao
sermos “nós”, que não invisibilizemos o outro! Se somos todos filhos de Deus,
se somos todos espíritos, é preciso compreender que cada um de nós enfrenta
toda sorte de desafios na realidade social em virtude das nossas diversidades.
Como nos diz Grada Kilomba,
precisamos ter o direito de sermos para além do que os outros nos definem,
porque somente seremos a partir da coletividade, quando formos a partir da
nossa individualidade e da nossa diversidade.
Ninguém
deveria morrer de fome ou pela sua diversidade, se somos iguais em espírito,
somos diferentes nas diversidades que compõem os nossos aprendizados e nas
diversidades com as quais nos projetos na reencarnação. Espíritas, sejamos
antirracistas, antilgbtfóbicos, antifascistas, anticapitalistas,
anti-preconceitos de toda sorte, para que possamos efetivamente aplicar os
ensinamentos do Evangelho, os ensinamentos de Jesus, pois Jesus se estivesse
reencarnado hoje, seria tudo isso e muito mais para ajudar esse mundo
turbulento a ser um lugar menos hostil para todos nós.
“Pessoas
brancas devem se responsabilizar criticamente pelo sistema de opressão que as
privilegia historicamente”, nos diz Djamila Ribeiro (2019), e nós acrescentamos
ainda que: os espíritas devem se
responsabilizar em pensar sobre o mundo e sobre as realidades sociais de forma
crítica, percebendo e denunciando os sistemas de opressão vigentes, e atuando,
tanto quanto puderem, na mudança de
práticas e discursos que colaboram com esses sistemas.
REFERÊNCIAS
ARRIBAS, Célia. Espiritismo, Gênero e Política: uma equação
tensa. Disponível em: https://revistaescuta.wordpress.com/2018/03/01/espiritismo-genero-e-politica-uma-equacao-tensa/.
Acesso em 05 de janeiro de 2021.
KARDEC, Allan. A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução José Herculano Pires. 20º ed. São Paulo: LAKE, 2001.
KARDEC, Allan. O Evangelho Segundo o Espiritismo.
Tradução de Salvador Gentile. 365ª ed. São Paulo: IDE, 2009.
MIGUEL,
Sinuê Neckel. Disposições políticas no
Espiritismo brasileiro: entre neutralidade conservadora e aspirações
socialistas. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/srh/article/view/50928.
Acesso em 05 de janeiro de 2021.
MARIOTTI, Humberto. O homem e a sociedade numa nova civilização. Tradução de J. L. Ovando. São Paulo: EDICEL, 1969.
PIRES, Herculano.
Prólogo. In MARIOTTI, Humberto. O homem
e a sociedade numa nova civilização. Tradução de J. L. Ovando. São Paulo:
EDICEL, 1969.
RIBEIRO, Djamila. Pequeno Manual Antirracista. Tradução
Heci Regina Canciani 1º ed. São Paulo: COMPANHIA DAS LETRAS, 2019.
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