sexta-feira, 19 de março de 2021

Reflexões Espíritas sobre a Sociedade do Cansaço - por Lindemberg Castro

 


Por Lindemberg Castro - Coordenador do IFEHP - lindembergsousac@gmail.com

No início de 2021, o Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires promoveu um curso relacionando temas de Saúde Mental com as obras de Herculano Pires, situando Herculano como um dos grandes pensadores ainda da atualidade, tendo em vista os debates suscitados pela sua vasta produção filosófica. Já no mês de fevereiro, o Centro Espírita Virtual Camilo Castelo Branco, promoveu em sua página no facebook, um bate-papo virtual com o mesmo título desse artigo: “Reflexões espíritas sobre a sociedade do cansaço”, e da qual também participamos; compartilhamos esse bate-papo virtual com os amigos Arivaldo Montalvão e Edson Tobler, a quem agradecemos pelas reflexões complementares que nos encorajaram a escrever esse artigo.

O presente artigo pretende estabelecer algumas relações entre três pensadores, o nosso filósofo espírita Herculano Pires, o filósofo sul coreano Byung-Chul Han, e a psicanalista brasileira Maria Rita Khel; três pensadores necessários para compreendermos os desafios do mundo para os espíritos reencarnados, que tem que lidar com as questões históricas e sociais próprias do seu tempo. Indicamos aos nossos leitores, caso queiram aprofundar-se, utilizamos como principais referências os livros Sociedade do Cansaço, de Byung-Chul Han, Ressentimento, de Maria Rita Khel, e O Espírito e o Tempo e também Educação para a Morte, de Herculano Pires. É um artigo breve, que merecerá outros desdobramentos em momento oportuno, portanto, apresentamos aqui algumas questões iniciais para a reflexão dos leitores e leitoras.

Sociedade do cansaço é um livro curto – numa época de velocidade da informação e do esgotamento, trata-se de uma forma precisa de transmitir para o público leitor o aspecto tenebroso da valorização de indivíduos inquietos e hiperativos que se arrastam no cotidiano produtivo realizando múltiplas tarefas, ao mesmo tempo em que adoecem psiquicamente. Publicado originalmente em língua alemã, Sociedade do cansaço foi traduzido para o português em 2015 e ampliado na segunda edição em 2017 com dois textos anexos esclarecedores: “Sociedade do esgotamento” e “Tempo de celebração: a festa numa época sem celebração”.

No livro, o filósofo sul-coreano Byung-Chul Han, professor de filosofia e estudos culturais da Universidade de Berlim, parte de uma constatação relativamente comum para o problema das relações entre sociedade e sofrimento psíquico: cada época tem suas enfermidades. Dado que os sofrimentos psíquicos são compreendidos nos dias atuais, sobretudo como desvios neuroquímicos, para ele a nossa época se configura como uma “violência neuronal” como consequência da sociedade adoecida sobretudo pelo capitalismo e suas diversas formas de opressão.

O termo “sociedade do cansaço” também se refere a sofrimentos psíquicos como síndrome de burnout , transtorno de déficit de atenção e hiperatividade e depressão, que são apreendidos pela compreensão do autor em sua relação direta com o modo operatório do capitalismo contemporâneo. Ou seja, os indivíduos são convidados e estimulados a se explorarem e a explorarem os outros, e consideram que isso seja algum tipo de autorrealização, em processos que fetichizam a vida humana e o próprio indivíduo. Podemos dizer que o aprofundamento das contradições capitalistas coincide com o aprofundamento do adoecimento psíquico humano, sobretudo a partir do século XX, fazendo disparar as taxas de suicídio e depressão, por exemplo.

Em Educação para a Morte, Herculano Pires (2016) nos diz que as injustiças brutais da estrutura social nos pesam e nos adoecem, despertando em nós os impulsos da morte como a violência e o suicídio. Por outro lado, e como contradição da própria estrutura capitalista, “nosso anseio de transcendência é apenas horizontal, voltado sistematicamente para a conquista de prestígio social, dinheiro e poder temporal”. Todo esse desgaste nos leva ao esgotamento psíquico e a processos de ressentimento e frustração (para utilizarmos um conceito da psicanalista Júlia Kristeva) que reverberam simultaneamente na estrutura social e nos indivíduos em particular. O ressentimento, categoria de análise trazida por Maria Rita Khel, pode nos ajudar a compreender a própria dinâmica de adoecimento psíquico pelo qual passamos, e como isso se transforma em processos maiores que atingem a própria sociedade.

O ressentimento não é um conceito originário da Psicanálise, esse é um ponto importante; com exceção de Nietzsche, na filosofia, não houve em outras áreas autores que se dedicaram a esse assunto. O mais próximo disso na Filosofia diz respeito às Filosofias da Existência, que trouxeram à baila conceitos como frustração (Sartre), melancolia (Camus e Kierkegaard), angústia (Kierkegaard), relação entre o universal e o específico (Simone de Beauvoir, a respeito do feminismo), etc.

Para Maria Rita Khel, a atualidade do ressentimento enquanto tema, além de clínica, é política, e, portanto, social, e interfere diretamente na vida como um todo; espiritamente falando, a sua análise também compreende as consequências das questões sociais para os espíritos encarnados, envoltos em uma superestrutura de desigualdade e egoísmo. Além disso, ela nos diz:

O ressentimento é uma constelação afetiva que serve aos conflitos característicos do homem contemporâneo, entre as exigências e as configurações imaginárias próprias do individualismo e os mecanismos de defesa do eu a serviço do narcisismo. A lógica do ressentimento privilegia o indivíduo em detrimento do sujeito e contribui para sustentar nele uma integridade narcísica que independe do sucesso de seus empreendimentos (2020, p. 09).

Privilegiando o indivíduo em sua estrutura narcísica, e não os processos subjetivos próprios do ser humano, o ressentimento desumaniza as pessoas e os sujeitos ao seu redor, estes passam a ser considerados responsáveis pelo que fazem aqueles sofrerem, é uma compensação, uma barganha. No nível macro da sociedade, o ressentimento pode ser direcionado a grupos sociais diversos, que passam a ser considerados como inimigos, culpados por algum tipo de desordem social, e logo, precisam ser combatidos. Sobre esse ponto, recomendamos aos leitores a palestra da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, como título “O perigo de uma única história”, em que ela explica como esse processo também pode ser utilizado para a instalação de sistemas de exceção como o nazismo e a escravização.

Maria Rita Khel, ao se referir ao Brasil em específico, analisa que o ressentimento presente em nosso país é canalizado não para quem causa a verdadeira desordem social, como militares e sua ditadura, políticos corruptos, etc.; na verdade, o ressentimento social é direcionado a grupos sociais historicamente explorados ou que lutam por uma sociedade melhor e mais justa; é assim que um benemérito como o padre Júlio Lancelotti, por exemplo, causa tanto ódio por parte dos ressentidos. Se Gramsci odeia os indiferentes, os ressentidos tomam partido contra os que lutam por uma sociedade mais justa, pois estes causam desordem na ordem estabelecida. Ao mesmo tempo, Khel nos afirma que outras formas de compensação do ressentimento social brasileiro, são: 1) estar envolvido com política, mas não com transformação social, 2) práticas religiosas que não dialogam com a sociedade a não ser para direcionar seu fundamentalismo (podemos incluir aqui parte do movimento espírita), 3) cultura de massas, 4) figuras simbólicas que reafirmem o brasileiro como cordial e acolhedor; tudo isso funciona como formas de suavizar o ressentimento, ao mesmo tempo que invisibiliza todas as lutas sociais.

Em diálogo com Khel, podemos citar a passagem escrita por Herculano Pires (2005), em “O Espírito e o Tempo”, que também elenca uma descrição bastante verossímil sobre a situação atual do Brasil, mergulhado em pleno governo de práticas necropolíticas:

Os regimes totalitários fizeram uma inversão curiosa e trágica do processo de desenvolvimento cultural. Transformaram seus líderes em novos deuses, de um fanatismo brutal, em que o sentimento de humanidade foi revertido em ferocidade selvagem. As religiões da violência cevaram as massas de medo ao sobrenatural. Aos arbitrários poderes divinos e às prerrogativas sagradas da hierarquia clerical (p. 220).

Essa passagem escrita por Herculano Pires vem ao encontro de um Brasil ressentido, tomado pela necropolítica com amplo apoio dos setores conservadores e poderosos, que, em verdadeiro conluio sinistro contra o seu próprio povo, tem fomentado morte, miséria e adoecimento psíquico em plena Pandemia. As religiões da morte, como afirma Herculano, representadas aqui também pelo milhões de espíritas que votaram em um candidato que contradiz tudo o que professam, tornaram-se parceiras desse macabro projeto de asfixiar a população, com a licença nada poética da representação da divindade, mas que na verdade reproduzem simplesmente o que há de pior do fascismo tupiniquim.

Todo esse cenário em que estamos vivendo, confunde o Espírito encarnado, que, além das suas próprias questões internas para lidar, também precisa lidar com as contradições da sociedade, que incidirão sobre ele de forma mais ou menos aprofundada. No sistema capitalista, que, alinhado a outros dois sistemas de opressão principais - como nos diz Angela Davis, o machismo e o racismo, essas contradições são levadas ao extremo, de modo que a sociedade do cansaço é resultante do ser humano transformado em fetiche produtivista no sentido capitalista, e reprodutivista no sentido de reproduzir a estrutura desigual maior; sem o paradigma do espírito para lhe ofertar um contraponto, e ainda tendo que carregar consigo o ressentimento que pode ter sua fonte nas imperfeições do espírito ou como resultado das desigualdades sociais.

Em todas essas situações há um processo de desumanização dos sujeitos, que não são considerados como seres humanos a priori, mas passam a depender da fetichização e da colaboração com os sistemas opressivos para serem minimamente considerados humanos, mas jamais iguais aos que detém o poder majoritário. Todo esse processo sufoca o espírito encarnado, sequer considerado e valorizado, como resultado do materialismo presente na estrutura da desigualdade.

Parece uma visão distópica sobre um livro de George Orwell, contudo, as questões básicas da reflexão filosófica ainda permanecem em nossos dias: a questão do humanismo e da filosofia social e política; foi nesse cenário que Herculano Pires desenvolveu boa parte das suas obras, inclusive tentando trazer elementos filosóficos mais otimistas para fazerem frente ao pessimismo existencialista que marcou o século XX, foi assim que Herculano escreveu obras como “O Ser e a Serenidade”, “O Sentido da Vida” e “O Espírito e o Tempo”, sendo claras respostas a obras de Sartre, Heidegger, Kierkegaard, etc.

As contradições sociais que elencamos até aqui também nos ajudam a perceber que a estrutura social é complexa, tanto na sua organização como nos seus efeitos que retornam aos próprios sujeitos em diferentes formas de impacto nas suas vidas. Essa complexidade demostra que a estrutura social não obedece a imperativos das leis de causalidade que o Espiritismo nos apresenta, mas antes, são frutos das ações dos próprios seres humanos, pautados em sistemas de opressão seculares e estruturais, e contra os quais a vida moral individual nada pode, necessitando de nossa parte, uma atuação coletiva de transformação social mais ampla. Conforme nos explica o Espiritismo, em “O Livro dos Espíritos” (2016), a afirmação de que as desigualdades sociais são criadas pelo próprio ser humano (item 806 e seguintes), portanto, não são criadas como imperativos das leis de causalidade.

Em “A Gênese”, Kardec (2001) vai ainda mais longe, e determina a natureza que a missão da reencarnação possui, para o progresso e a transformação das realidades:

Com a reencarnação, caem os preconceitos de raça e de casta, de vez que o mesmo Espírito pode renascer rico ou pobre, grão-senhor ou proletário, patrão ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos invocados contra a injustiça da servidão e da escravatura, contra a sujeição da mulher à lei do mais forte, nenhum há que saliente, pela lógica, o fato material da reencarnação. Portanto, se a reencarnação funda sobre uma lei da Natureza o princípio da fraternidade universal, ela fundamenta sobre a mesma lei o da igualdade dos direitos sociais e, por conseguinte, o da liberdade (p. 25).

Sobre esse cenário desafiador da existência no mundo material, Herculano Pires nos diz:

A existência, em que o homem se afirma pela dignidade da consciência, pelo esforço constante de superação de si mesmo, foi trocada em miúdos, em níqueis inflacionados, pelo viver larvar do dia a dia rotineiro e da subserviência ao desvalor dos que conquistaram os postos de comando na sociedade aviltada. Inteligências robustas e promissoras esvaziam-se na consumação de si mesmas, servindo de maneira humilhante a senhores ocasionais, que podem assegurar-lhes o falso prestígio de salários altos e posições invejadas pela corja rastejante. (...) Os sonhos do antigo humanismo foram simples delírios de pensadores esquizofrênicos. A ordem geral, que todos aceitam, é viver para si mesmo e mais ninguém (2016, p. 64-65).

Por essas reflexões de Herculano, vemos que o individualismo, imperfeição nossa que deriva do orgulho e do egoísmo, tem a habilidade de se manifestar de diferentes formas na existência material, alimentando por vezes ilusões sobre nós mesmos e sobre a estrutura social; nos aviltamos para sermos encaixados no mundo, mesmo que o encaixe seja desproporcional e possa nos levar a condições de meros expectadores da desigualdade estrutural ou pior, reprodutores que colaboram com a desigualdade. A sociedade do cansaço precisa do individualismo para que possa funcionar a contento, pois é ele quem estimula o indivíduo a se auto-explorar e a explorar seu semelhante.

Yes, we can – o slogan utilizado pelo presidente estadunidense Barack Obama – expressa com precisão o excesso de positividade da sociedade do desempenho (HAN, 2017, p. 24). No lugar do enunciado disciplinar coercitivo “tu deves”, imposto de fora, entra em cena o novo enunciado “nós podemos”, o qual, em sua essência, remete a uma falsa liberdade ao impor aos indivíduos o imperativo da realização, da mobilidade, da velocidade e da superação constantes, transformando qualquer coisa diferente disso em culpa, medo, autoflagelo, etc.

Sobre essa questão do imperativo individualista camuflado no “nós podemos”, Byung-Chul Han nos diz que tudo reside na falsa liberdade e no processo destrutivo contido nesta transformação contemporânea que vivenciamos a partir do capitalismo. O filme Cisne Negro , de Aronofsky (2010), pode evidenciar sua tese. Neste thriller psicológico, a imposição da performance e do desempenho mediante a autossuperação é incorporada pela protagonista e levada às suas últimas consequências. A autodestruição da bailarina – que figura aqui apenas como metáfora do desempenho profissional e social – nada mais é senão a perseguição obstinada do enunciado “tu podes”. Em que pesem os efeitos destrutivos, o filme parece ratificar a constatação de Byung-Chul Han de que “[a] positividade do poder é mais eficiente que a negatividade do dever” (p. 25). Ou seja, a autossuperação postulada em yes, we can é capaz de extrair toda a potência e eficácia insuspeitas ao próprio sujeito, ainda que o custo da autossuperação possa ser a autossupressão, e o consequente adoecimento psíquico ou somático em forma de variadas doenças.

O capitalismo entretém o individualismo baseado no consumo e na produção excessiva da exploração do indivíduo pelo indivíduo, o machismo fortalece o individualismo da suposta supremacia do homem sobre a mulher e sobre os gêneros e as sexualidades considerados dissidentes, como as pessoas LGBTs, e o racismo entretém o individualismo pautado na diferenciação do outro pela sua cor de pele ou pela sua cultura, como se os Espíritos não reencarnassem em corpos e experiências diversas, como se não fosse da natureza da própria reencarnação, a diversidade de experiências; a natureza da reencarnação é a diversidade expressa na multiplicidade das vivências e habilidades humanas, e somente o nosso apego ao exterior é capaz de nos fazer crer em superioridade corporal ou cultural, qualquer que seja.

Como considerar que toda a estrutura de desigualdade descrita acima, não afeta em cheio a vida dos espíritos encarnados? Como considerar que apenas a chamada “reforma íntima” é suficiente para transformar a realidade? Como atribuir às leis de causalidade a responsabilidade frente às desigualdades criadas e fomentadas pelo próprio ser humano? A essas e outras questões, voltaremos a posteriori, em novo artigo que dará continuidade às reflexões introdutórias que elencamos até aqui.

Aos nossos leitores, agradecemos pelo exercício da leitura filosófica voltada para reflexões espíritas.

REFERÊNCIAS

HAN, Byung-Chul. A sociedade do cansaço. Tradução de Enio Paulo Giachini. 1ª ed. Petrópolis: VOZES, 2015.

KARDEC, Allan. O Livro dos Espíritos. Tradução de José Herculano Pires. 1ª ed. São Paulo: EDICEL, 2016.

KARDEC, Allan. A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução de Victor Tollendal Pacheco. 20ª ed. São Paulo: LAKE, 2001.

KEHL, Maria Rita. Ressentimento. 3ª ed. São Paulo: Boitempo, 2020.

PIRES, Herculano. O Espírito e o Tempo. 9ª ed. São Paulo: PAIDEIA, 2005.

PIRES, Herculano. Educação para a Morte. 1ª ed. São Paulo: PAIDEIA, 2016.


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