Talvez você conheça a poesia do Carlos Drummond de Andrade
“O Homem; as viagens”. Em caso negativo, listo-a abaixo.
O homem, bicho da
terra tão pequeno
Chateia-se na terra
Lugar de muita
miséria e pouca diversão,
Faz um foguete, uma
cápsula, um módulo
Toca para a lua
Desce cauteloso na
lua
Pisa na lua
Planta bandeirola na
lua
Experimenta a lua
Coloniza a lua
Civiliza a lua
Humaniza
a lua.
Lua humanizada: tão
igual à terra.
O homem chateia-se na
lua.
Vamos para marte -
ordena a suas máquinas.
Elas obedecem, o
homem desce em marte
Pisa em marte
Experimenta
Coloniza
Civiliza
Humaniza marte com
engenho e arte.
Marte humanizado, que
lugar quadrado.
Vamos a outra parte?
Claro - diz o engenho
Sofisticado e dócil.
Vamos a vênus.
O homem põe o pé em
vênus,
Vê o visto - é isto?
Idem
Idem
Idem.
O homem funde a cuca
se não for a júpiter
Proclamar justiça
junto com injustiça
Repetir a fossa
Repetir o inquieto
Repetitório.
Outros planetas
restam para outras colônias.
O espaço todo vira
terra-a-terra.
O homem chega ao sol
ou dá uma volta
Só para tever?
Não-vê que ele
inventa
Roupa insiderável de
viver no sol.
Põe o pé e:
Mas que chato é o
sol, falso touro
Espanhol domado.
Restam outros
sistemas fora
Do solar a colonizar.
Ao acabarem todos
Só resta ao homem
(estará equipado?)
A dificílima
dangerosíssima viagem
De si a si mesmo:
Pôr o pé no chão
Do seu coração
Experimentar
Colonizar
Civilizar
Humanizar
O homem
Descobrindo em suas
próprias inexploradas entranhas
A perene,
insuspeitada alegria
De conviver.
Conheci esse poema pelos olhos de Ailton Krenak, vencedor em 2020 do prêmio Juca Pato pela União Brasileira de Escritores; escritor, ativista do movimento ambiental, organizador da Aliança dos Povos da Floresta, que reúne comunidades ribeirinhas e indígenas na Amazônia, e um dos maiores pensadores brasileiros da atualidade. Seu livro “A vida não é útil”, nada mais atual para tentar nos tirar da letargia que é “viver” em pleno sistema capitalista, que fetichiza e relativiza a vida e sua importância.
É fantástica e inegável a capacidade da ciência de nos permitir sonhar com viagens para outros mundos, Jeff Bezos que o diga. Esse conhecimento científico que nos tem levado cada vez mais distante nada é sem perguntas que possam construir sentidos para a Vida, afinal de contas, temos um planeta inteirinho para cuidar de forma imediata, e cujas notícias catastróficas sobre o meio-ambiente, por exemplo, não ocupam mais o lugar de previsão; diante do desgaste ecológico e ambiental em que nos encontramos, algumas notícias e apelos ambientais ainda soam como alertas para os desavisados, mas o fato que nos rodeia é que a crise ecológica já está atuando na degradação cada vez mais rápida do planeta, o que atinge a Vida em todos os seus níveis.
Temos uma contradição temporal de percepção entre o presente e o nosso futuro incerto. O futuro nos parece obscuro porque negligenciamos o presente, no entanto, esperamos sempre “por algo melhor”, algo como um “mundo de regeneração” que resolverá automaticamente todos os nossos problemas.
Saber
fazer boas perguntas é uma das habilidades que aprendemos ao nos tornarmos
cientistas, filósofos, livres pensadores, cada um em sua área do saber.
Deslocar pressuposições é parte desse caminho para chegarmos a possíveis
respostas e resultados. A maestria de artistas, poetas e filósofos em produzir
esses deslocamentos nos ajuda a resgatar o motivo e o que nos motiva a fazer
ciência, a produzir conhecimento, sobretudo em tempos de negacionismo atuando
em diferentes frentes, não apenas no campo científico, mas também na história,
na sociologia, na filosofia, na pedagogia, no Espiritismo, etc.
Sim, o negacionismo atinge de diferentes formas os meios espíritas também, seja pela lógica anti-vacina alinhada à ideologia bolsonarista ou pelo princípio místico de que a única vacina que funciona é a de cunho espiritual. Ou ainda, na compreensão da reencarnação com um fim utilitarista que a transforma em uma máquina de moer gente em plena pandemia, justificando mortes e genocídio como princípios espirituais aceitáveis. O período pandêmico no Brasil ficará marcado, inclusive espiritualmente, como um período em que um genocídio foi fomentado diante das nossas vistas, fazendo do nosso povo um joguete ideológico que visou lucros obscuros.
Para esses espíritas, dizemos: não, a vida não é útil! A vida humana não pode ser ideologizada para propagar a naturalidade da necropolítica.
Ailton Krenak, em seu supracitado livro, nos guia em uma viagem que entrelaça múltiplas formas de conhecimento sem sair do planeta, do país, da aldeia ou de casa. É um livro da hora urgente, extrema e necessária, em meio à pandemia que evidenciou dimensões até então não palpáveis de nossas desconexões e conexões globais, humanas e espirituais. Sim, seu livro possui uma espiritualidade fluida, ativa, voltada para a transformação do mundo. Mas não é uma transformação cega, que serve como fogos de artifício de discursos religiosos vazios de dominação das consciências; nele encontramos sentido para a transformação pelo engajamento, pelo senso de coletividade, para o cuidado de si e do mundo.
Hoje vivemos dia a dia com a descoberta de que nossos corpos em circulação ou em quarentena, alimentados pelo agronegócio e pelo utilitarismo capitalista, afetam e são afetados por milhões de vidas. Descobrimos também, que as pessoas mais ricas do planeta aumentaram em muito a sua fortuna em plena crise global; descobrimos ainda, que a pandemia no Brasil foi acalentada pela necropolítica, que define quais os corpos que merecem ou não viver. A pandemia escancarou que para o capitalismo a vida é apenas útil, nada mais; hora ela é mercadoria, hora é meio de produção, hora ela mal recebe a sua mais-valia de que é “merecedora”. A vida humana é, na estrutura capitalista, apenas mais uma forma de lucrar mais e mais.
Percorrendo caminhos entre músicos como Milton Nascimento, xamãs, filósofos e cientistas, Krenak constrói linha por linha o paraquedas-foguete da viagem para dentro de nós mesmos de que tanto necessitamos. A cada página, nos vemos convivendo com algo muito maior do que a ideia de humanidade comporta. Talvez nós espíritas possamos aprender com ele aquilo que não conseguimos aprender ainda: ou desenvolvemos uma visão global e um engajamento adequado sobre os problemas do mundo e sobre a própria reencarnação, ou continuaremos a tratar o progresso espiritual na mesmice da reforma íntima individualista. A provocação de Krenak quanto às religiões em geral coloca em xeque o esforço individual de elevação sem comprometimento efetivo com o coletivo, com o mundo. Isso é maravilhoso! Krenak sabe quais perguntas fazer.
Nos capítulos-paraquedas
(cujos temas servem para adiarmos o fim do mundo) do seu livro, Aílton Krenak,
um dos maiores pensadores brasileiros da atualidade (digo-o novamente), lança
perguntas centrais para repensarmos nossas vidas e nossa forma de produzir
sentidos.
1. Não se come dinheiro: A ideia de humanidade é útil
para o que e para quem? O que é a vida?
2. Sonhos para adiar o fim do mundo: Por que contar sonhos?
3. A máquina de fazer coisas: Quem é a praga que come o
mundo? Como recriamos mundos?
4. O amanhã não está à venda: Faz sentido esperar a volta à
“normalidade” depois da pandemia?
5. A vida não é útil: Por que vivemos? Vale a pena
adiar o fim de que mundos? Ao fim da leitura, me perguntei: quão longe a
ciência poderia ir com esses deslocamentos?
Esse é um livro para levar no peito e compartilhar, inclusive entre os irmãos espíritas. Ler, emprestar, anotar, trocar, reler e contar como se sonho fosse, contar com a alegria da novidade. Nas palavras de Krenak, contar sonhos é veicular afetos com pessoas com quem convivemos, dividindo um ideal coletivo capaz de refundar o conceito de humanidade, nos preparar para nosso cotidiano e afetar o mundo sensível. Contar sonhos equivale ao exercício do esperançar da utopia freireana, capaz de nos guiar de forma potente e engajada.
Afinal, de que serviria a reencarnação se não fosse para transformar o mundo?!
Referência:
KRENAK, Ailton. A vida não é útil. 1ª ed. Companhia das Letras: São Paulo, 2020.
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