NECROPOLÍTICA,
PSICANÁLISE E ESPIRITISMO
Por Lindemberg Castro - Coordenador do Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires
A pandemia causada pelo novo coronavírus
escancarou ainda mais diversas contradições a partir do mundo patologicamente
considerado “normal”, no qual, mesmo agonizando em inúmeras desigualdades
sociais, estávamos “acostumados” a viver (ou sobreviver). Com a ideia de um
“novo normal”, que para muitos parece uma realidade alternativa já instalada,
vemos que o tal “novo normal” é ainda mais cínico em seus discursos, justificando
as desigualdades sociais de toda ordem, movimentando vidas humanas como peças
de uma engrenagem (o que surpreenderia até mesmo Foucault), e banalizando a
vida, reificando o ser humano (exatamente como nos previu George Lukács). No
processo de reificação a partir das atividades capitalistas e produtivas, o ser
humano passa a ser identificado cada vez mais como objeto inanimado e seu valor
está diretamente relacionado com uma medida quantitativa dentro da produção de
objetos ou mercadorias circulantes, perdendo a sua autonomia, a sua autoconsciência
e a consciência da realidade que o cerca.
A Necroplítica nunca esteve tão fortalecida,
como em nossos tempos atuais! Passamos de uma normose da qual nos queixávamos
pela falta de tempo, pela baixa qualidade de vida ou pelo excesso de trabalho,
para uma normose amplamente difundida, aceita e justificada pelos discursos
neoliberais, discursos de ódio, notícias falsas, e relativização da vida humana
possivelmente vitimada em plena pandemia, mas não necessariamente uma vida
chorável ao ser perdida, como nos lembra Judith Butler (dentro da
necropolítica, nem todas as vidas perdidas são choráveis). O mal-estar da
civilização atingiu patamares ainda maiores, que surpreenderiam até mesmo
Freud, devido ao esforço contínuo do ser humano em normatizar todos os
instintos de morte a que nos alerta Herculano Pires em “Educação para a Morte” (2016).
Os discursos neoliberais, aliás, nunca
estiveram tão em evidência em nosso país, pois agora, parcela considerável da
população brasileira (incluindo parte dos espíritas) defende ações de
austeridade do governo federal, apesar de não faltarem recursos disponíveis
para o combate à pandemia, e mesmo sabendo que milhares de pessoas ou morrerão
na miséria e no abandono ou pelo vírus, ou pelos dois simultaneamente. Isso,
quando não justificam a inoperância governamental, que, indo além da relativização
da gravidade da pandemia e com diversos discursos anticientíficos, vem em
constante inação de prevenção e combate ao coronavírus, apesar da dramática
situação do nosso país como um dos epicentros da pandemia, no mundo. O Brasil já
ultrapassou a marca de 162 mil mortos, e por mais que parte dos espíritas se apoie na lei de causa de efeito para justificarem esses desencarnes, sabemos que a
negligência governamental pode ter sido muito mais letal do que o vírus.
Na perspectiva da necropolítica, não possuímos
liberdade e nem autonomia, há uma rejeição à
crença “romântica” da soberania como
algo em “que o sujeito é o principal autor, controlador do seu próprio
significado”, Achille Mbembe (2018) preocupa-se, sob uma ótica inteiramente
diversa sobre essas questões, “com aquelas formas de soberania cujo projeto
central não é a luta pela autonomia, mas ‘a instrumentalização generalizada da
existência humana e a destruição material de corpos humanos e populações’.
Estamos ignorando o luto coletivo mesmo com
nosso dramático cenário, mas um luto dessa magnitude, do ponto de vista psicanalítico,
não pode simplesmente ser ignorado, e a seu tempo, deverá cobrar o seu
pagamento frente à nossa indiferença. Parte dos espíritas tem se apegado à Lei
de Causa e Efeito para justificarem os mais de 162 mil desencarnes em nosso
país, devido à pandemia; essa é outra forma de normose e talvez o estágio
máximo da necropolítica espírita: justificar desencarnes, dos quais uma parte
poderia ter sido evitada com ações governamentais efetivas de proteção às
pessoas.
Aprendemos com o Espiritismo que nem todos os
acontecimentos durante a reencarnação estão determinados, uma vez que a
Filosofia Espírita não admite nenhuma forma de fatalismo; em O Livro dos
Espíritos entendemos que a sociedade é responsável por todos os que fazem parte
dela, e esse ponto traz consigo a necessidade de cada vez mais lutarmos por
condições dignas de existência, de modo que a cada geração o bem-estar social
seja ampliado. Aceitar que em meio a uma pandemia, as ações governamentais de
prevenção e cuidado com a saúde das pessoas não adiantariam em nada já que
“todas” estavam destinadas a morrer, nos coloca no mesmo patamar dos
indiferentes citados por Gramsci, e nos conduz em uma perspectiva de alienação
justificada pela necropolítica. De que servem então os meios materiais para a
qualificação da existência na carne, se não puderem ser utilizados para a
ampliação de oportunidades educacionais, culturais, econômicas, sociais, e em
favor da saúde física dos Espíritos reencarnados?! A filósofa nigeriana Sophie
Oluwole nos lembra que o desenvolvimento humano depende diretamente da
ampliação das liberdades em todos os âmbitos da existência: do aspecto
econômico ao cultural, do educacional ao social, da qualidade de vida à saúde;
quando estamos reencarnados em um país que funciona na base da necropolítica, a
nossa liberdade, já limitada pelo progresso espiritual tímido que realizamos até
aqui, se torna muito mais diminuta, uma vez que nos são interditadas, muitas
vezes, as condições básicas da existência material.
Também temos visto muitos espíritas reabrirem
seus centros em plena pandemia, respaldados pelos decretos governamentais
estaduais e municipais que permitem uma porcentagem de frequentadores em
templos religiosos. Mas, como a pandemia ainda não acabou, é o caso de
perguntarmos: há uma necessidade urgente em reabrir centro espírita agora, mesmo
que os meses de setembro, outubro e novembro tenham sido os que registram
maiores taxas de contaminação pelo coronavírus, no mundo?! Bom, alguns
justificam sua decisão com base nas “ordens superiores da Espiritualidade maior”
(seja lá o que signifique isso). Parece que parte dos espíritas esqueceu as
recomendações de Kardec, na Revista Espírita de 1865, em que ele disserta sobre
o papel dos espíritas durante a epidemia de cólera; Kardec afirma que desprezar
medidas sanitárias frente a uma epidemia seria verdadeiro suicídio, e que cabe
ao espírita velar pela saúde do seu corpo, para cumprir com seus deveres frente
à reencarnação.
Quem quer que tenha lido e meditado nossa obra O Céu
e o Inferno segundo o Espiritismo, sobretudo o capítulo
sobre as apreensões da morte, compreenderá a força moral que
os espíritas adquirem em sua crença, em presença do flagelo que dizima as
populações. Segue-se que vão negligenciar as precauções necessárias em casos
semelhantes e baixar a cabeça diante do perigo? Absolutamente não. Eles tomarão
todas aquelas que são aconselhadas pela prudência e por uma higiene racional,
porque não são fatalistas e porque, se não temem a morte, sabem que não devem
procurá-la. Ora, desprezar as medidas sanitárias que podem preservá-los seria
um verdadeiro suicídio, cujas consequências conhecem muito bem para a ele se
exporem. Consideram como um dever velar pela saúde do corpo, porque a saúde é
necessária à realização dos deveres sociais. Se buscam prolongar a vida corporal,
não é por apego à Terra, mas para ter mais tempo para progredir, melhorar-se,
depurar-se, despojar-se do homem velho e adquirir maior soma de méritos para a
vida espiritual (KARDEC, 1865).
Urgentemente, seria fundamental que nós espíritas retomássemos o estudo aprofundado a partir da obra de Kardec, talvez isso nos
tiraria da “paz de pantanal”, para usar um termo de Herculano Pires. Adorno (1967),
em “Educação após Auschwitz) já nos alertou que os processos civilizatórios não
se dão de forma a priori e nem são
universais, cabendo à “educação o fim último de que Auschwitz não se repita”;
mas, infelizmente a história humana conta em seu inconsciente coletivo, com
diversos episódios de desumanização, e ao que parece a normatização da tragédia
que envolve a pandemia é apenas mais um triste episódio do nosso processo de
autoreificação.
Judith Butler, em entrevista concedida este
ano, nos lança as seguintes perguntas: “em que circunstâncias é possível lamentar uma vida perdida? De quem
são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público?
Quais são essas vidas que, se perdidas, não serão consideradas em absoluto
uma perda? É possível que algumas de nossas vidas sejam consideradas
choráveis e outras não”? Essas perguntas são absolutamente necessárias para
todos nós que estamos reencarnados atualmente, quer sejamos espíritas ou não.
Butler (2020) ainda explica que:
Faço essas perguntas difíceis e perturbadoras porque eu, como vocês, me
oponho à morte violenta; à morte por meio da violência humana; à morte
resultante de ações humanas, institucionais ou políticas; à morte provocada por
uma negligência sistêmica por parte dos estados ou por modos de governança
internacionais.
Todos nós deveríamos nos
opor a todas as mortes provocadas pela negligência sistêmica que apaga as
diferenças, as diversidades, que instrumentaliza a vida das pessoas e elege
quem pode viver e quem pode morrer! Esse mecanismo não corresponde a uma lei
natural, é algo forjado pelos sistemas de opressão que comandam o mundo; em O
Livro dos Espíritos vemos que os problemas sociais são criados pelo ser humano,
e não por Deus.
Se tivéssemos o hábito
de não invisibilizarmos as questões sociais, compreenderíamos facilmente que a
Doutrina Espírita reafirma a preocupação com elas, conectando-as ao progresso
espiritual. Para o Espiritismo não há divisão entre a realidade social e a
realidade espiritual, uma vez que estamos encarnados, somos espíritos
encarnados, portanto, somos convidados a atuarmos no mundo. Mariotti (1967) nos
diz que “o progresso é uma sucessão de fatos morais e sociais determinados
pelas relações entre o elemento espiritual e o elemento material”.
Herculano Pires (2016)
nos traz elementos filosóficos e psicanalíticos para compreendermos a indiferença
ainda presente no ser humano e a frustração. Herculano diz que a frustração
transformou a morte na única herança possível que temos construído. A necropolítica,
na visão de Achille Mbembe surge como um projeto de poder dos que detém os
poderes político e econômico, contudo, ela se fortalece quando a frustração e a
indiferença de todos aqueles que se deixam contaminar por elas.
Para encerrar essas
reflexões que ora nos detemos, elencamos abaixo uma citação de Herculano Pires
(2016) ainda sobre os resultados da nossa frustração e da nossa indiferença,
que alimentam não somente a necropolítica mas todas as formas de opressão e
desigualdades:
Restaram em nossas mãos profanadoras apenas as heranças animais: a violência
assassina que é o meio normal de que as feras se servem para afastar obstáculos
do seu caminho; a astúcia da serpente para engolir e digerir os adversários
mais frágeis; a destruição dos bens alheios em proveito próprio, no vampirismo
desenfreado da selva social; a dominação arrogante dos que não dispõem de
forças para se defender; a mentira, a trapaça, a perfídia de que os próprios
selvagens se enojam, e que nós, os civilizados, transformamos, na alquimia da
canalhice generalizada, em processos sutis de esperteza, que, para vergonha do
século e da espécie, consideramos provas de inteligência. Nossos meios de fuga
reduzem-se à covardia da fuga de nós mesmos (p. 63-64).
O Espiritismo nos convida à transformação de nós
mesmos e das realidades sociais na reencarnação, a grande questão é:
aceitaremos esse convite, ou continuaremos a reproduzir padrões de
comportamento de violência, indiferença e negligência?
REFERÊNCIAS:
ADORNO, Theodor. Educação após Auschwitz. Disponível em: https://rizomas.net/arquivos/Adorno-Educacao-apos-Auschwitz.pdf. Acesso em 07 de novembro de 2020.
BUTLER, Judith. De quem são as vidas consideradas choráveis em nosso mundo público? Disponível em: https://brasil.elpais.com/babelia/2020-07-10/judith-butler-de-quem-sao-as-vidas-consideradas-choraveis-em-nosso-mundo-publico.html. Acessado em 07 de novembro de 2020.
COLOMBO, Cleusa Beraldi. Ideias
sociais espíritas. São Paulo: EDITORA COMENIUS, 2014.
FREUD, Sigmund. O mal-estar
na civilização. Tradução de Paulo César de Souza. São Paulo: COMPANHIA DAS
LETRAS, 2010.
GRAMSCI, Antonio. Odeio
os indiferentes. Tradução de Alvaro Bianchi. São Paulo: BOITEMPO, 2020.
KARDEC, Allan. O Livro
dos Espíritos. Tradução de José
Herculano Pires. 59ª ed. São Paulo: LAKE, 1998.
KARDEC, Allan. Revista
Espírita: edição de 1865. Tradução de Salvador Gentile. 1ª ed. São Paulo:
IDE, 1993.
PIRES, José Herculano. Introdução
à Filosofia Espírita. São Paulo: FEESP, 1993.
PIRES, José Herculano. Educação
para a Morte. 1ª ed. São Paulo: PAIDEIA, 2016.
MARIOTTI, Humberto. O
homem e a sociedade numa nova civilização. São Paulo: EDICEL, 1967.
MBEMBE, Achille. Necropolítica.
São Paulo: N-1 EDIÇÕES, 2018.
Este artigo nos leva a profundas reflexões. Como bem escreveu Herculano Pires,A paz do Pântano, e é neste ostracismo da vida que muitos deitam a cabeça.Parabéns meu amigo, pelo rico material
ResponderExcluirtão bem elaborado.
Gratidão, amigo Efrem! Realmente, os tempos atuais nos pedem que deixemos de lado a "paz de pantanal", em prol de uma ação no mundo que crie sentidos e colabore com a transformação.
ExcluirAbraços, amigo!
ExcluirMeu amigo, parabéns pelo seu artigo, e falo aqui como alguém que se sentiu tocado e contemplado pelo que aqui esta escrito.
ResponderExcluirNão poderia ter sido escrito em melhor momento, invizibilização da dor e naturalização da morte e da violência, e em muitos momentos, validados pela incompreensão de uma Doutrina que nos ensina, segundo nos coloca o próprio Herculano, a construirmos o reino de Deus na terra, o Espiritismo, não é uma religião contemplativa.....
Gratidão, pela oportuna partilha!!!!
Gratidão, amigo Alexandre! Fico feliz que tenha gostado do texto, e mais, que tenha sido tocado por ele, eu sempre digo que a filosofia não é apenas um movimento racional da mente, mas também diz respeito ao "sentir" frente ao mundo. Que possamos construir o Reino através de práxis transformadoras. Abraços!
Excluir