Hoje
é o Dia Internacional contra a LGBTfobia, data que marca a histórica retirada
da homossexualidade do Cadastro Internacional de Doenças, monitorado pela
Organização Mundial de Saúde. Aquele 17 de maio de 1990 ficou marcado como
símbolo de luta por direitos e reconhecimento do ato humano mais básico e ao
mesmo tempo mais elevado: AMAR. Por isso
mesmo, consideramos justa toda forma de amor!
Longe
de ser uma data comemorativa, é antes uma data de lutas, de conquistas, de
resistência contra a necropolítica que define quais são os corpos que merecem
viver e os que não merecem viver em uma sociedade, ou, como nos disse Judith
Butler, as vidas que são consideradas choráveis.
Desde o
impeachment da presidenta Dilma Rousseff, através de golpe
político-midiático-empresarial-religioso, houve o recrudescimento de posturas
conservadoras nos discursos políticos e no âmbito da vida pública em todas as
esferas, especialmente no que tange às questões de gênero e sexualidade
(MISKOLCI, 2019). Lideranças religiosas e políticas que se autodenominam
cristãs defenderam (e defendem) abertamente posturas contrárias a expansão dos
direitos sexuais como união civil homossexual/homoafetiva, registro de pessoas
trans com seu nome de auto-identificação em hospitais e delegacias, a
instituição de cotas para pessoas trans/travestis em seleções de pós-graduação,
etc., e cercearam debates sobre gêneros, sexualidades no âmbito das políticas
públicas em geral.
Tais
discursos e posturas tem tido repercussões midiáticas e geraram reações de
apoio entre aqueles que se dizem conservadores, cristãos, defensores da família
e dos bons costumes, e de rejeição, por opositores que denominam tais posturas
como fundamentalistas e fascistas; mais que isso, atualmente esses discursos e
posturas são alguns dos sustentáculos do bolsonarismo e do conservadorismo,
alimentando intensa agenda de discursos de ódio e separatividade contra grupos
sociais historicamente excluídos, como a população LGBTQIA+.
Bolsonarismo
e Patriarcado/Machismo andam juntos na luta contra as diversidades, e, já que
estamos em um dos países mais machistas do mundo, com taxas alarmantes de
feminicídio e assassinato de pessoas lgbtqia+, o Bolsonarismo caiu como uma luva
para reativar o conservadorismo sexual de dominação dos corpos e das vidas das
pessoas.
As vozes
conservadoras também se levantaram (e ainda se levantam) entre os espíritas,
basta olharmos para a Pesquisa Data Folha realizada em 2018, publicada nos
diversos portais de notícias, que apontou que mais de um milhão e setecentos
mil espíritas votaram no candidato que representava o que havia de mais
característico em relação ao conservadorismo e ao fundamentalismo religioso,
muito embora, esse mesmo candidato não tenha apresentado, durante toda a companha
presidencial, nenhum projeto de governo coerente e conectado com a realidade
brasileira. O que vimos foi um show de discursos de ódio sendo propagados em
toda a campanha, sem que isso não chocasse os cerca de 55% de espíritas que
votaram em Bolsonaro.
Mas,
como temos visto no Brasil, as diversas vertentes de fundamentalismo religioso
e suas matrizes católica, espírita, neopentecostal, de religiões de matriz
africana, etc., admitem toda sorte de discursos violentos, necropolíticos e
dogmáticos, desde que determinados valores considerados conservadores sejam
mantidos. O conservadorismo na esfera
pública é um anti-humanismo!
A adesão
à retórica conservadora por parte de parcela importante e contumaz dos
espíritas guarda relação direta com práticas e discursos fundamentalistas
altamente identificadas com os fundamentalismos existentes no Brasil. Sobre
isso, Miguel (2020), nos diz que:
Entre
importante parcela dos espíritas, se vê uma adesão à retórica autoritária e à
ideia de limpeza contra a corrupção – que assume uma conotação ampla,
abrangendo toda a sorte de comportamentos considerados desviantes ou decaídos.
Aproximam-se assim do fundamentalismo neopentecostal (inclusive, em alguma
medida, no perfil de voto, como revelaram pesquisas nas eleições presidenciais
de 2018), denunciando a “implantação” da “ideologia de gênero”, o materialismo ateu esquerdista, corruptor da família, da autoridade, da sexualidade sadia etc.
(p. 100).
Um
episódio bastante conhecido entre os espíritas e que representa bem o
apagamento que as diversidades sofrem com o discurso hegemônico e conservador
de cunho espírita, e que teve grande repercussão nas redes sociais, foi a fala
do médium e palestrante Divaldo Pereira Franco no 34º Congresso Espírita de
Goiás em 2018, ao responder a pergunta da plateia: O que dizer sobre a ideologia de gênero? Embora a resposta tenha
envolvido questões abertamente político-partidárias (mesmo o movimento espírita
hegemônico adotando uma postura de suposta neutralidade seletiva), com direito
à citação e exaltação da “República de Curitiba” e seu presidente o “Dr. Moro”
(sic), além de Karl Marx e o marxismo cultural (sic), cito apenas a primeira
frase da resposta e sua parte final, a seguir:
Eu diria
em frase muito breve, que é um momento de alucinação psicológica da sociedade.
[...] A doutrina nos ensina, e para os jovens, eu direi que há uma ética,
liberdade, o sexo é livre. Livre sim. Mas ele não tem a liberdade de indignificar
a sociedade, poderemos sim exercer o sexo, é uma função do corpo e também da
alma, mas com respeito e com a presença do amor. Portanto, a teoria de gênero,
jamé (DIVALDO).
A
declaração, embora tenha encontrado receptividade na plateia que o assistia em
ocasião, causou enorme repercussão negativa nos setores progressistas dos
movimentos espíritas no Brasil, precisamente porque uma das mais conhecidas
lideranças espíritas do país, reproduziu um discurso de ideologia de gênero
deslocado dos mais referendados estudos sobre as teorias de gêneros,
sexualidades, teorias queers, estudos decoloniais, estudos feministas, etc. Infelizmente,
na estrutura sacerdotal imaginária criada dentro dos setores tradicionais do
movimento espírita (o Espiritismo não possui classe sacerdotal), a postura de
Divaldo Franco é amplamente encorajada e praticada, de modo que qualquer
palestrante de projeção no meio espírita, se coloca na posição de emitir
opiniões sobre assuntos que não pesquisa e que não conhece, pautados unicamente
no discurso de autoridade mediúnico-espiritual.
A
declaração de Franco não foi apenas anticiência, no sentido de ignorar a
produção de conhecimentos dos estudos de gêneros e sexualidades, trouxe consigo
também a invisibilização das identidades LGBTQIA+, das lutas sociais dos
movimentos que compõem esses grupos diversos, priorizando um apagamento das
diferenças, reafirmando um discurso heteronormativo que tenta a todo custo
instituir quais são os corpos que importam mais.
Na
perspectiva de Butler (2019), a hegemonia heterossexual cria materialidades
sexuais e políticas, ou seja, cria a materialidade de sexo e gênero à força,
atribuindo limitações ou supremacias aos corpos; é exatamente o que ocorre no
movimento espírita mais inclinado à religião conservadora, apesar do Espírito
ser uma categoria epistemológica no Espiritismo, e o conceito de reencarnação
encerrar em si todas as diversidades humanas, o movimento conservador segue o
padrão da normatividade e materialidade butleriana para designar supremacias,
diferenças, tratamentos e discursos diferentes entre os corpos não apenas
LGBTQIA+, mas também corpos negros, corpos que professam outras religiões, etc.
É uma forma totalmente nova de materialismo produzida pelos próprios espíritas
conservadores.
Arribas
(2019), nos lembra que os espíritas, “como quaisquer agentes sociais, são
produtos de processos de socialização e reproduzem esses processos”, portanto,
não raro encontramos nas narrativas espíritas em livros, palestras, discursos,
etc., a reprodução dessa materialidade a que se refere Butler, e que acaba por
invisibilizar as identidades consideradas não-normativas.
Ainda
sobre o discurso conservador de Divaldo Franco, Arribas (2019), nos diz que:
O que ele faz é reforçar uma visão conservadora e reacionária
que vem constrangendo sobremodo intelectuais, professores e educadores com
ações de amordaçamento intelectual e crítico. Os atos e interferências
negativas de bancadas fundamentalistas e de movimentos como “Escola sem
Partido” em temas ligados às lutas pelos direitos sexuais e reprodutivos, pelos
direitos das mulheres e de grupos vulneráveis e minoritários – étnicos,
culturais, comportamentais e religiosos – estão aí para dar o tom desse tipo de
conservadorismo. É na gramática tacanha do reacionarismo brasileiro
contemporâneo que o termo “ideologia de gênero” vem se popularizando,
comprometendo princípios de civilidade, de tolerância e de respeito à
pluralidade e à diversidade.
Apesar
disso, a reação dos espíritas progressistas que alinham estudos decoloniais
antirracistas, anticapitalistas, antilgbtfóbicos, antimachistas, e
antifascistas, com as obras fundamentais de Allan Kardec e outros pensadores
espíritas importantes como Leon Denis, Gonzalez Soriano, Anália Franco,
Herculano Pires, Humberto Mariotti, Manuel Porteiro, Ney Lobo, etc., tem
trazido à baila uma série de ações que visam combater o conservadorismo no seio
dos setores mais tradicionais dos movimentos espíritas. Foi nesse contexto que
surgiram os chamados coletivos espíritas progressistas, espalhados pelo país, e
que desenvolvem estudos e práticas que relacionam o Espiritismo com as mais
recentes pesquisas progressistas das ciências sociais, da filosofia, da
história, da pedagogia, da antropologia, da psicologia, da psicanálise, etc.;
aliás, o próprio Allan Kardec (2013), já no século 19, afirmava que o
Espiritismo é uma doutrina progressista.
O
potencial progressista do Espiritismo não está apenas na sua eventual relação
com as ciências duras, mas também e talvez principalmente com as ciências
sociais, as ciências psicológicas e a própria filosofia. Desse modo, na
compreensão do próprio Kardec (2013), o Espiritismo deveria cumprir um papel na
reencarnação dos espíritos, o papel de colaborar diretamente para o fim dos
preconceitos e das desigualdades sociais, mas o movimento espírita conservador
não admite tais ideias.
Kardec
(2013) nos diz o seguinte sobre o papel da reencarnação:
Com a reencarnação caem os preconceitos de raças e de castas,
pois o mesmo Espírito pode renascer rico ou pobre, nobre ou proletário, chefe
ou subordinado, livre ou escravo, homem ou mulher. De todos os argumentos
invocados contra a injustiça da servidão e da escravatura, contra a sujeição da
mulher à lei do mais forte, não há nenhum que supere em lógica o fato material
da reencarnação. Se, pois, a reencarnação funda sobre uma lei da Natureza o
princípio da fraternidade universal, funda sobre a mesma lei o da igualdade dos
direitos sociais e, por consequência, o da liberdade (p. 25).
Ainda
sobre o que nos diz Kardec acima, Arribas (2019) também lembra o potencial
progressista do Espiritismo, e como ele poderia potencializar profundas
transformações na vida social:
O espiritismo, que poderia ser, pelos seus princípios,
protagonista na promoção da igualdade, da fraternidade e da justiça social, se
limitou, por conta de uma visão paralisante, confortável e conformista de
mundo, que está na origem social dos espíritas – provenientes em sua grande maioria
da classe média branca, escolarizada e heterossexual –, a uma explicação
reencarnacionista da meritocracia, das desigualdades sociais (se há miseráveis
e vulneráveis no mundo, eles e elas nada mais fazem do que “pagar” por seus
erros de vidas passadas) e da salvação pela caridade material pontual, de cunho
assistencialista, em plena conformidade, portanto, com o pensamento conservador
e reacionário.
Uma
tendência espírita à direita, ou no caso da realidade brasileira, uma tendência
muitas vezes à extrema-direita, são amplamente renegadas pelos chamados
espíritas progressistas, que, apesar das suas diferentes atuações, discursos e
relações identitárias com as pautas que abordam, estão amplamente engajados na
reconfiguração de discursos, práticas e referências que ofereçam aos espíritas
um caminho que não seja o da justificação divina das desigualdades sociais, e
nem o do fundamentalismo religioso que transformou a obra de Kardec em dogma,
em cânone inquestionável.
É preciso
que nós espíritas compreendamos que a reencarnação guarda em si mesma as
diversidades humanas de todas as ordens, e que, portanto, a atuação na
reencarnação não pode ser somente no campo individualista, pois os preceitos
cristãos presentes no Espiritismo nos convidam à ação de transformação no
mundo, como nos diz Herculano Pires (1946); aliás, Herculano criticava o que
ele chamou de “aplicação individual do evangelho”, como se não estivéssemos
reencarnados em determinado tempo histórico e social.
Sendo
assim, Arribas (2019) nos afirma que:
Ser homem, ser mulher, ser negro, negra, indígena, ser rico,
pobre, escolarizado, heterossexual, lésbica, bissexual, do campo ou da cidade
etc. são todas formas de classificação que interagem simultaneamente no mundo
social, fazendo com que certos entrecruzamentos sejam objeto de um tratamento
menos igualitário, mais desigual do que outros. E apesar de os homens brancos,
da classe média e heterossexuais serem em sua grande maioria os grandes beneficiários
ou privilegiados por desigualdades de gênero, não se pode ignorar que eles
também carregam um pesado fardo ligado aos atributos da masculinidade
dominante: autossuficiência, invencibilidade, agressividade, virilidade,
violência, brutalidade, não manifestação dos sentimentos, proibição do choro e
de demonstrações de fraquezas de todas as ordens – certamente formas nada
cristãs de ser, de estar, de sentir e de agir nesse mundo. Enfatizar esses
elementos, entretanto, não pressupõe que os homens sejam tão vítimas da
desigualdade de gênero quanto as mulheres. Contudo, indica que a construção de
uma maior igualdade de gênero depende não apenas de uma tomada de consciência
em relação à opressão feminina, mas também de uma reflexão sobre o lugar e o
papel dos homens nesse processo.
Nesse
sentido da fala de Célia Arribas, queremos aqui destacar os grupos e coletivos
que hoje fazem a diferença positiva para trazer um novo olhar para o movimento
espírita, ofertando visões amplas e contextualizadas com a nossa época, e ao
mesmo tempo, convidando os espíritas a uma ação mais assertiva e menos
contemplativa frente ao mundo.
Destacamos
aqui o trabalho pedagógico e de formação desenvolvidos pelos seguintes grupos:
Ágora Espírita (Pernambuco), Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires
(Ceará), Coletivo Girassóis – Espíritas pelo bem comum (Ceará), ABPE –
Associação Brasileira de Pedagogia Espírita (São Paulo), CEJUS – Coletivo de
Estudos Espiritismo e Justiça Social (São Paulo), AEPHUS – Associação Espírita de
Pesquisas em Ciências Humanas e Sociais (Goiás), ABREPAZ – Associação
Brasileira Espírita de Direitos Humanos e Cultura de Paz (Goiás), o CEEEM –
Centro de Estudos Espíritas Emmanuel (Suíça), provavelmente o primeiro centro
espírita progressista da Europa, dentre outros valorosos grupos.
O
trabalho de formação desenvolvido por esses coletivos é um trabalho de base, de
educação, e visa ofertar outras referências e narrativas ao movimento espírita;
há muito trabalho ainda pela frente, tendo em vista o crescimento astronômico
do fundamentalismo religioso no Brasil, apesar disso, o trabalho continua na
superação dos desafios em prol de um Espiritismo humanista, progressista e
capaz de dialogar com os problemas do nosso tempo.
O preconceito não pode ser
maior do que o amor, do que a nossa humanidade, do que a nossa espiritualidade.
Consideramos justa toda forma de amor!
REFERÊNCIAS
ARRIBAS, Célia. O sexo dos espíritos: gênero e sexualidade no espiritismo. REVISTA USP, v. 121, p. 97-108, 2019.
ARRIBAS, Célia. Espiritismo, Gênero e Política: uma equação tensa. Disponível em: https://revistaescuta.wordpress.com/2018/03/01/espiritismo-genero-e-politica-uma-equacao-tensa/. Acesso em 05 de janeiro de 2021.
BUTLER, Judith. Corpos que importam. Tradução de Veronica Daminelli e Daniel Yago Françoli. 1ª ed. São Paulo: N-1EDIÇÕES.
BUTLER, Judith. Problemas de Gênero: feminismo e subversão da identidade. 8ª ed. Rio de Janeiro: CIVILIZAÇÃO BRASILEIRA, 2015.
KARDEC, Allan. A Gênese: os milagres e as predições segundo o Espiritismo. Tradução de José Herculano Pires. 10ª ed. São Paulo: LAKE.
MIGUEL, Sinuê Neckel. Disposições políticas no Espiritismo brasileiro: entre neutralidade conservadora e aspirações socialistas. Disponível em: https://periodicos.ufpb.br/index.php/srh/article/view/50928. Acesso em 05 de janeiro de 2021.
MISKOLCI, Richard, Teoria Queer: um aprendizado pelas diferenças. Belo Horizonte: Autêntica, 2019.
PIRES, Herculano. O Reino. 1ª ed. Disponível em: https://files.comunidades.net/portaldoespirito/01__O_Reino_1946.pdf. Acesso em 05 de janeiro de 2021.
Lindemberg,excelente texto,obrigada e parabéns!
ResponderExcluirGratidão, minha amiga. Grande abraço! :)
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