Por Alessandra Buarque - Mestra em Políticas Sociais e Cidadania, membra do Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires
Imaginemos um cenário distópico...
“Esta narrativa foi conhecida pelos idos do ano de 2055, fruto de matérias de jornais e
revistas da época encontradas em alguns poucos livreiros e sebos antigos, vez que pouca
importância foi dada aos acontecimentos pelos gestores públicos à época, portanto, não
sendo objeto de importância de registro.
Aconteceu em um país continental, com população de mais de 213 milhões de pessoas,
com cerca de 11 milhões de pessoas que não sabiam ler e escrever e renda média de
1.380,00 (hum mil trezentos e oitenta reais). Esse país foi surpreendido por uma
pandemia de um vírus mortal, chamado de covid-19, cuja saída para conter o contágio
exponencial seria a adoção de medidas sanitárias e a vacinação em massa da população.
Contam as notícias da época que algumas das medidas adotadas pelo principal
governante do país foram: a) negar a doença, sua gravidade, rapidez do contágio e
eficácia da vacina; b) promover aglomerações reunindo pessoas em várias cidades desse
país; c) ignorar as propostas de acordos para a compra de vacinas para imunização da
população; d) demorar a decidir pela adoção de medidas sanitárias e tentar impedir os
demais governantes que poderiam fazê-lo e; e) dificultar a adoção de medidas de auxílio
emergencial financeiro às pessoas em situação de vulnerabilidade social.
Nesse cenário distópico, em 14 meses, aproximadamente, meio milhão de pessoas
foram mortas, nesse país; em decorrência do vírus letal e da ausência de medidas para
garantir a vida e a dignidade das pessoas. Milhares ainda morreram após isso, conta a
história.”
Qual poderia ser a finalidade de resgatar esta distopia para falar de bioética e direitos
humanos? Será que as decisões adotadas pelo governante da distopia citada impactaram
o cotidiano das pessoas no campo da bioética? E quanto aos direitos à vida e à
dignidade, no campo dos direitos humanos, o que podemos concluir?
Se, de alguma forma, você conhece algum país com semelhanças com a distopia acima
narrada, parece ser o que menos importa. Importa mais compreender que o conceito da
bioética é aplicável àquele cenário e em qualquer outro, real ou fictício, senão vejamos.
Tudo está intrinsicamente ligado, relacionado, imbricado, nesse mundo. A vida animal
regida pelas leis naturais, primeiramente e pelas leis humanas, por outro, é impactada,
completa e totalmente, pelos avanços da civilização. A cada tempo, novos cenários,
novos conceitos, paradigmas, transformações no campo da tecnologia, das ciências;
promovem impactos profundos no homem2
, no animal, e na natureza. Tais impactos,
analisando a identidade de um indivíduo, incluem dimensões biológicas, psicológicas, sociais, culturais e espirituais.
Desta forma, como dar conta da questão ética que
permeia a vida?
O conceito da ética, de uma forma mais geral, trata de um ramo da filosofia dedicado
aos assuntos morais. Ética e moral são temas relacionados, mas são diferentes. Isso
porque moral se fundamenta na obediência às normas, costumes ou mandamentos
culturais, hierárquicos ou religiosos e a ética, busca fundamentar o modo de viver pelo
pensamento humano.
Conhecendo a diferença entre moral e ética, poderemos nos aprofundar um pouco mais
nas questões do cotidiano e como as decisões que são adotadas interferem no que é
conhecido como bioética3
e sua interface com os direitos humanos. A exemplo da
Declaração Universal dos Direitos do Homem, elaborada no pós-guerra, foi escrita,
também, a Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos, com princípios e
objetivos próprios que devem ser objeto de conhecimento de todos nós, em pesquisa
mais aprofundada. Um dos artigos da Declaração trata da Responsabilidade social e
Saúde (artigo 14), o que nos levou à reflexão do quanto esse princípio pode ser aplicado
à distopia que narramos no início do texto e ao contexto do Brasil atual, atingido pela
pandemia da covid-19, com reflexos no cotidiano de todas as pessoas, deixando marcas
profundas.
É importante trazer neste texto, para conhecimento e reflexão, o princípio da Declaração
Universal da Bioética e Direitos Humanos, da Responsabilidade Social e Saúde,
esclarecendo o quanto podemos agir para transformar, criticar e modificar o status quo.
Recortamos pontos específicos que compõem esse princípio para objeto de nossa
análise: a) a promoção da saúde e do desenvolvimento social para a sua população é
objetivo central dos governos, partilhado por todos os setores da sociedade; b)
considerando que usufruir o mais alto padrão de saúde atingível é um dos direitos
fundamentais de todo ser humano, sem distinção de raça, religião, convicção política,
condição econômica ou social, o progresso da ciência e da tecnologia deve ampliar:
(i) o acesso a cuidados de saúde de qualidade e a medicamentos essenciais, incluindo
especialmente aqueles para a saúde de mulheres e crianças, uma vez que a saúde é
essencial à vida em si e deve ser considerada como um bem social e humano;
Ao que nos parece, com uma breve leitura do princípio anterior, podemos constatar que,
no Brasil da conjuntura atual, a Declaração Universal da Bioética e dos Direitos
Humanos vem sendo, diuturnamente, confrontada e descumprida pelo governante de
plantão.
As decisões adotadas no cotidiano do Brasil em pandemia da covid-19,
impactam, de forma severa, o acesso aos cuidados de saúde e a garantia de vida e da
dignidade humana, infringindo, as leis, o bom-senso, os costumes, os pactos sociais,
inclusive sob forma de Declaração Universal.
Em cada decisão que tomamos nessa vida, principalmente quando se trata de pessoa ou
pessoas que decidem os destinos de um país inteiro, resultam em impactos relevantes e profundos (a Bioética surgiu a partir da segunda metade do século XX, quando a humanidade passou a se defrontar com uma série de dolorosos questionamentos éticos suscitados pelos avanços alcançados na ciência. (CNBB. Formação Política para Cristãos Leigos. Coordenação Central de Educação à Distância PUC-Rio); por isso é tão importante, urgente e necessário, trazer a temática da bioética
e dos direitos humanos para a pauta; ancorados em diretrizes de uma Declaração que já
existe, definindo princípios de conduta e orientando padrões de comportamento no
campo da ética para a valorização e manutenção da vida e a dignidade da pessoa
humana.
Nós nos acostumamos a pensar a bioética como algo fora de nós, como o uso de animais
para pesquisas em laboratórios cosméticos, por exemplo; a eutanásia; entre outros, e não
nos apercebemos que a bioética está engendrada em nosso cotidiano.
No material de estudo de formação política para cristãos leigos encontramos que “a
Bioética deve ser compreendida como um conhecimento complexo de natureza
pragmática, orientado para a tomada de decisões em casos clínicos e em meio às novas
situações apresentadas pela evolução do pensamento e da prática científica, nos
diferentes contextos morais. A Bioética não lida somente com questões morais, mas,
sobretudo, com a variedade de contextos nos quais estas questões são levantadas. No debate bioético há um vasto número de temas, que vão desde as tomadas de decisões
na prática hospitalar, passando pelo esgotamento dos sistemas público e privado de
saúde, até as consequências dos avanços científicos e suas repercussões sociais e
econômicas. Dentre os temas mais recorrentes estão a dignidade da pessoa humana.
Com esse conteúdo, podemos refletir, por exemplo, sobre o Brasil da pandemia e as
decisões adotadas pelo agente público no combate a esse cenário e nos perguntarmos:
essas decisões atingiram as nossas vidas na perspectiva da bioética e dos direitos
humanos? Encontramos na Declaração Universal da Bioética e dos Direitos Humanos
princípios que possam nortear os rumos dos agentes públicos na condução de decisões
que sejam convergentes com a vida e a dignidade da pessoa humana?
Nos parece que a resposta é sim e, que podemos confrontar as decisões de governo que
infringem os princípios da Declaração Universal da Bioética e dos Direitos Humanos,
garantindo que a vida seja preservada, em sua inteireza.
Referências:
Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística. IBGE. PNAD. 2020
Conferência Nacional dos Bispos do Brasil. CNBB. Formação Política para Cristão
Leigos. Coordenação Central de Educação à Distância. PUC-Rio. Textos em pdf.
Declaração Universal sobre Bioética e Direitos Humanos.
https://bvsms.saude.gov.br/bvs/publicacoes/declaracao_univ_bioetica_dir_hum.pdf.
Acesso em 20.06.2021
https://agenciabrasil.ebc.com.br/educacao/noticia/2020-07/taxa-cai-levemente-masbrasil-ainda-tem-11-milhoes-de-analfabetos. Acesso em 21.06.2021
https://mundoeducacao.uol.com.br/filosofia/bioetica.htm. Acesso em 21.06.2021
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