Uma questão que se mostra bastante delicada e
até mesmo espinhosa quando falamos de
Doutrina Espírita, é sobre a “Terceira Revelação” ou “Consolador Prometido”.
Como foi a construção dessa ideia de que o
Espiritismo ocupa a posição de “Terceira Revelação”
para a humanidade e como se apresenta esse conceito dentro das obras da codificação espírita?
Como considerar a afirmação
de que o Espiritismo é o “Consolador Prometido”, sendo que na atualidade os espíritas somam menos de 2%
dos habitantes do planeta? (*)
Para iniciarmos nossas
reflexões é necessário entendermos o
significado do termo “revelação”, que segundo
dicionário, quer dizer:
“... Ato ou efeito de revelar ou revelar-se, coisa
que é revelada, denúncia necessária, religião revelada,
inspiração, conhecimento súbito,
tirar o véu...” (**)
Segundo Allan Kardec, no livro “A Gênese”,
logo em seu início, no capítulo I –
Caracteres da Revelação Espírita:
“...todas as ciências que
nos fazem conhecer os mistérios da natureza são revelações e pode- se dizer que existe para nós uma
revelação incessante; a Astronomia nos tem revelado o mundo astral que não conhecíamos; a Geologia a formação
da Terra; a Química, a lei das afinidades; a Fisiologia, a funções
do organismo, etc. Copérnico, Galileu,
Newton, Laplace, Lavoisier, são reveladores...”
E segue dizendo:
“...Os homens progridem
incontestavelmente por eles mesmos e pelos esforços de sua inteligência; mais, liberados a suas
próprias forças, este progresso é muito lento se não forem ajudados por homens mais avançados como o escolar
está para o professor.
Todos os povos têm tido seus homens
de gênio que vieram, em diversas épocas, dar um impulso e os tirar de sua
inércia...”
E mais adiante vai afirmar:
“...O Espiritismo, fazendo-nos conhecer
o mundo invisível
que nos envolve, e ao meio do qual vivemos sem nos duvidarmos, as leis que
o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado
dos seres que o
habitam, e, por consequência, o destino do homem após a morte,
é uma
verdadeira revelação
na acepção científica do termo...”
Não nos resta dúvidas até aqui que o
Espiritismo se enquadra sim dentro da categoria
de uma revelação científica, pois traz conhecimentos novos até então
inexplorados pelos pesquisadores e
cientistas de sua época e abre um amplo campo de estudos da alma humana, das consequências de sua
sobrevivência após o fenômeno da morte e suas
consequentes relações com o plano físico.
Mas como surgiu a ideia de que a Doutrina
Espírita é uma revelação no sentido divino,
ou mais ainda, de que seria a “Terceira Revelação”, sendo que a primeira
estaria personificada na figura de
Moisés, que deixou o legado na crença de um Deus único e a segunda
seria o próprio
Cristo que veio nos ensinar a
Lei do Amor?
Temos aqui que abrir um grande parênteses para
buscarmos o entendimento desse
conceito de revelação divina, pois estamos nesse contexto falando de
aproximadamente 33% da humanidade
que se resume ao mundo ocidental judaico cristão. (***). Portanto, o entendimento de uma revelação divina nessa
realidade, não pode ser considerada em escala
planetária já que as culturas orientais estão fora desse contexto, e
apenas para reforçar, essas culturas em números de fiéis e seguidores são maiores
que aquelas as quais estamos
nos referindo. E para que fique mais claro ainda, devemos localizar o
surgimento do Espiritismo na França
do século XIX, que naquele momento histórico era uma das grandes herdeiras da cultura disseminada pelos cristãos por
toda a Europa Ocidental, com fortes influências dos movimentos protestantes que por
ali se enraizaram.
Então, vamos tentar compreender como foi
construída essa ideia de “Terceira Revelação” dentro
do Espiritismo.
A primeira vez que vemos uma citação sobre esse
assunto nas obras espíritas, ocorre
na edição de março/1861 da Revista Espírita, quando o médium Sr. Rodolfo da
cidade de Mulhouse oferta a Kardec
a carta intitulada: “A Lei de Moisés e a
Lei do Cristo” e que vem assinada
pelo Espírito Israelita chamado Mardochée, que era um parente desencarnado do próprio
médium. Nesta carta, nós destacamos o seguinte trecho:
“...Os mandamentos de Deus,
dados por Moisés, trazem o germe da moral cristã a mais extensa, mas os comentários da Bíblia restringiram-lhe o
sentido, porque empregados em toda a sua pureza,
não seriam compreendidos então. Mas os dez mandamentos de Deus com isso não
ficaram menos o frontispício brilhante, como o farol que deveria
esclarecer a Humanidade no caminho que tinha a percorrer. Foi Moisés que abriu o caminho; Jesus continuou a obra; o Espiritismo a terminará...”
No mesmo ano de 1861, no mês de junho a Revista
Espírita vai trazer em sua sessão
“Correspondência” uma carta do Sr. Jean Baptiste Roustaing, advogado da corte imperial de Bordeaux, onde esse nosso
conhecido personagem vai discorrer sobre seus
trabalhos na sua cidade natal e das alegrias que sente ao tomar contato
com os conceitos espíritas, que
naquele momento, eram difundidos por Allan Kardec através da Revista Espírita. Roustaing fala principalmente sobre as
descobertas no campo da mediunidade e reencarnação. Em um dos trechos desta carta ele diz:
“...Agradeço com alegria e
humildade esses divinos mensageiros por terem vindo nos ensinar que o Cristo está em missão sobre a Terra, para a
propagação e o sucesso do Espiritismo, essa terceira explosão da bondade divina,
para cumprir esta palavra final do Evangelho: "Unum ovile et unus pastor?
por terem vindo nos dizer:
"Não temais nada! O Cristo
(chamado por eles Espírito de Verdade), a Verdade é o
primeiro e o mais santo missionário das ideias
espíritas...”
Continuando ainda no ano de 1861, na edição de
setembro da Revista Espírita, o mesmo
médium Sr. Rodolfo vai trazer mais uma carta dessa vez de um outro parente seu, também israelita, desencarnado de nome
Edouard Pereyre e que é intitulada: “Um
Espírito israelita aos seus correligionários”, da qual destacamos os seguintes
trechos: “...O
Espiritismo é o acontecimento de uma era que verá se realizar essa revolução
nas ideias dos povos; porque o
Espiritismo destruirá essas prevenções incompreendidas, esses preconceitos sem causas que acompanharam e seguiram os Judeus em sua longa e penosa
peregrinação...”
E continua dizendo: “...Sim,
o Espiritismo é a terceira revelação; revela-se a uma geração de homens mais avançados, tendo mais nobres aspirações,
aspirações generosas e humanitárias, que devem concorrer para a fraternidade
universal...”
Nota-se até aqui, que esse conceito estava
sendo apresentado a Kardec por dois Espíritos e um médium, todos
pertencentes a mesma
família israelita. A carta do Sr.
Roustaing não era uma psicografia e o mesmo não cita propriamente o termo “Terceira
Revelação”, mas traz um conteúdo com uma ideia
semelhante num determinado trecho de sua
missiva. E nos parece que Kardec maturou essa ideia, pois vai apresentá-la na
publicação de “O Evangelho Segundo Espiritismo”, que foi lançado no ano de 1864,
logo no capítulo I, intitulado “Não
vim destruir a Lei”, de onde retiramos o seguinte trecho:
“...A lei do Antigo
Testamento teve em Moisés a sua personificação; a do Novo Testamento tem-na no Cristo. O Espiritismo
é a terceira revelação da lei de
Deus, mas não tem a personificá-la
nenhuma individualidade, porque é fruto do ensino dado, não por um homem, sim
pelos Espíritos, que são as vozes do Céu, em todos os pontos da Terra, com o
concurso de uma multidão inumerável de intermediários...”
Por todo esse capítulo I de “O Evangelho
Segundo Espiritismo”, encontramos diversos
trechos que remetem as cartas dos Espíritos israelitas que foram apresentadas a Kardec em 1861 e podemos perceber a
construção da ideia de revelações ao longo dos
períodos, principalmente na história do povo judeu, e como essa ideia é
cativante no sentido de unificação
das culturas, bem como o fim do conflito entre religiões. O conceito de que as revelações são apresentadas para um povo
escolhido e evoluído, aparecem na mensagem do
Espírito israelita, colocando em particular os hebreus como
privilegiados nesse processo. Não podemos
nos esquecer o contexto histórico e cultural em que se encontrava a Europa e a França naquele momento, onde também se
consideravam um povo evoluído, em que sua cultura
era superior aos dos outros povos que eles mantinham como colônias. Essa era a
visão eurocêntrica que predominava
em toda Europa de meados do séc. XIX, e que formava o caldo sociocultural onde vivia Allan
Kardec.
Vamos ainda encontrar dentro das obras da
codificação outras citações sobre o
tema como por exemplo nas Revistas
Espíritas de setembro/1867, quando Kardec vai trazer
o artigo intitulado: “Caracteres da Revelação Espírita”, e que mais tarde ele desenvolve
na obra “A Gênese” o mesmo artigo no capítulo I. Uma outra citação sobre a “Terceira
Revelação”, vai ocorrer
no periódico de março/1868 da Revista Espírita sob o título:
“Correspondência
inédita de Lavater com a Imperatriz Maria da Rússia”,
de onde extraímos o seguinte trecho:
“...Aproveito esta ocasião,
senhor, para vos exprimir os sentimentos de minha profunda e perfeita estima, partilhada pelos Espíritas sinceros de todos os países, que sabem dignamente
apreciar os serviços eminentes que vosso zelo infatigável prestou ao
desenvolvimento científico e à
propagação da sublime e tão consoladora Doutrina Espírita. Esta terceira revelação terá por consequência a regeneração, o
progresso moral e a consolidação da fé na pobre Humanidade, infelizmente extraviada, e que flutua entre a dúvida
e a indiferença, em matéria
de religião e de moral...”
Podemos perceber que a ideia de “Terceira
Revelação”, apresentada e adotada por
Kardec em “O Evangelho Segundo
Espiritismo”, vai ser desenvolvida e aprimorada,
sendo publicada na quinta e última obra da codificação “A Gênese”. Cabe-nos aqui
contextualizar sobre esse conceito, não restando-nos dúvidas que o Espiritismo
se apresenta mesmo como uma revelação
no que se refere a sua parte filosófica e científica pois suas ideias trazem novos modos de pensar
os conceitos da morte, da sobrevivência da alma, da relação dos desencarnados com o plano físico, da vida futura,
além de também trazer a metodologia experimental no trato com as comunicações mediúnicas.
Quando, porém, falamos de uma revelação divina,
ou no aspecto religioso, não podemos
perder de vista o contexto cultural e os limites geográficos, que colocavam a sociedade europeia de então, como
integrante de um conjunto de crenças que podemos classificar como judaico-cristãs. Nesse contexto, seria
extremamente danoso nos esquecermos que
todo o mundo oriental com suas culturas, crenças, políticas e sociedades, não
estava presente nas discussões e
debates europeus. E reafirmando o que dissemos no início dessas reflexões, esse mundo oriental possui uma
população de fiéis e de pessoas bem maior do que o mundo ocidental, ao qual estamos nos referindo. Portanto seria
no mínimo imprudente colocarmos o Espiritismo
como uma religião superior
ou acima de tantas outras
que existem há muito mais
tempo. Necessário se faz que entendamos o contexto histórico-cultural em que Allan Kardec trouxe esse conceito, para
não cairmos no erro de adotarmos uma pretensa
superioridade sobre tantas outras tradições e crenças existentes no mundo.
Para uma compreensão honesta sobre essa
temática bem como com o próprio Allan
Kardec, nós temos que praticar a decolonialidade tão necessária quando se trata de contextos anacrônicos, sejam eles
dentro do Espiritismo ou fora dele. Não podemos e não devemos ser arrogantes ao afirmar que o Espiritismo é a Terceira
Revelação ou o Consolador Prometido,
enviado por Deus aos homens, se queremos buscar a aproximação da Doutrina Espírita
com outras correntes do pensamento
humano.
Referências:
(*) https://abrade.com.br/quantos-sao-os-espiritas-no-brasil-e-no-mundo/
(**) https://dicionario.priberam.org/revelação
(***) https://www.pewresearch.org/topic/religion/religious-demographics/
Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de
Estudo Psicológicos - mar/1861 – Instituto de Difusão Espírita – 1993.
Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de
Estudo Psicológicos - jun/1861 – Instituto de Difusão Espírita – 1993.
Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de
Estudo Psicológicos - set/1861 – Instituto de Difusão Espírita – 1993.
Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de
Estudo Psicológicos - set/1867 – Instituto de Difusão Espírita – 1999.
Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de
Estudo Psicológicos - mar/1868 – Instituto de Difusão Espírita – 2000.
Kardec, Allan. Revista Espírita – O Evangelho
Segundo Espiritismo - abr/1864 – Federação
Espírita Brasileira – 2002.
Kardec, Allan. Revista
Espírita – A Gênese – 3ª ed. 1868 –
Trad. Carlos de Brito
Imbassahy
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