domingo, 15 de maio de 2022

Espiritismo - Terceira Revelação? - por Fábio Diório

 


Escrito por Fábio Diório, atua na área de Eletrônica Industrial e é graduando em História. Milita no movimento espírita da cidade de Rio Claro, participa como membro gestor do IFEHP - Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires e mantém um canal de divulgação da Doutrina Espírita no YouTube chamado “Espiritismo em Ação”.

Uma questão que se mostra bastante delicada e até mesmo espinhosa quando falamos de Doutrina Espírita, é sobre a “Terceira Revelação” ou “Consolador Prometido”.

Como foi a construção dessa ideia de que o Espiritismo ocupa a posição de “Terceira Revelação” para a humanidade e como se apresenta esse conceito dentro das obras da codificação espírita?

Como considerar a afirmação de que o Espiritismo é o “Consolador Prometido”, sendo que na atualidade os espíritas somam menos de 2% dos habitantes do planeta? (*)

Para iniciarmos nossas reflexões é necessário entendermos o significado do termo “revelação”, que segundo dicionário, quer dizer:

“... Ato ou efeito de revelar ou revelar-se, coisa que é revelada, denúncia necessária, religião revelada, inspiração, conhecimento súbito, tirar o véu...” (**)

Segundo Allan Kardec, no livro “A Gênese”, logo em seu início, no capítulo I – Caracteres da Revelação Espírita:

“...todas as ciências que nos fazem conhecer os mistérios da natureza são revelações e pode- se dizer que existe para nós uma revelação incessante; a Astronomia nos tem revelado o mundo astral que não conhecíamos; a Geologia a formação da Terra; a Química, a lei das afinidades; a Fisiologia, a funções do organismo, etc. Copérnico, Galileu, Newton, Laplace, Lavoisier, são reveladores...”

E segue dizendo:

“...Os homens progridem incontestavelmente por eles mesmos e pelos esforços de sua inteligência; mais, liberados a suas próprias forças, este progresso é muito lento se não forem ajudados por homens mais avançados como o escolar está para o professor. Todos os povos têm tido seus homens de gênio que vieram, em diversas épocas, dar um impulso e os tirar de sua inércia...”

E mais adiante vai afirmar:

“...O Espiritismo, fazendo-nos conhecer o mundo invisível que nos envolve, e ao meio do qual vivemos sem nos duvidarmos, as leis que o regem, suas relações com o mundo visível, a natureza e o estado dos seres que o habitam, e, por consequência, o destino do homem após a morte, é uma

verdadeira revelação na acepção científica do termo...”

 

Não nos resta dúvidas até aqui que o Espiritismo se enquadra sim dentro da categoria de uma revelação científica, pois traz conhecimentos novos até então inexplorados pelos pesquisadores e cientistas de sua época e abre um amplo campo de estudos da alma humana, das consequências de sua sobrevivência após o fenômeno da morte e suas consequentes relações com o plano físico.

Mas como surgiu a ideia de que a Doutrina Espírita é uma revelação no sentido divino, ou mais ainda, de que seria a “Terceira Revelação”, sendo que a primeira estaria personificada na figura de Moisés, que deixou o legado na crença de um Deus único e a segunda seria o próprio Cristo que veio nos ensinar a Lei do Amor?

Temos aqui que abrir um grande parênteses para buscarmos o entendimento desse conceito de revelação divina, pois estamos nesse contexto falando de aproximadamente 33% da humanidade que se resume ao mundo ocidental judaico cristão. (***). Portanto, o entendimento de uma revelação divina nessa realidade, não pode ser considerada em escala planetária já que as culturas orientais estão fora desse contexto, e apenas para reforçar, essas culturas em números de fiéis e seguidores são maiores que aquelas as quais estamos nos referindo. E para que fique mais claro ainda, devemos localizar o surgimento do Espiritismo na França do século XIX, que naquele momento histórico era uma das grandes herdeiras da cultura disseminada pelos cristãos por toda a Europa Ocidental, com fortes influências dos movimentos protestantes que por ali se enraizaram.

Então, vamos tentar compreender como foi construída essa ideia de “Terceira Revelação” dentro do Espiritismo.

A primeira vez que vemos uma citação sobre esse assunto nas obras espíritas, ocorre na edição de março/1861 da Revista Espírita, quando o médium Sr. Rodolfo da cidade de Mulhouse oferta a Kardec a carta intitulada: “A Lei de Moisés e a Lei do Cristo” e que vem assinada pelo Espírito Israelita chamado Mardochée, que era um parente desencarnado do próprio médium. Nesta carta, nós destacamos o seguinte trecho:

“...Os mandamentos de Deus, dados por Moisés, trazem o germe da moral cristã a mais extensa, mas os comentários da Bíblia restringiram-lhe o sentido, porque empregados em toda a sua pureza, não seriam compreendidos então. Mas os dez mandamentos de Deus com isso não ficaram menos o frontispício brilhante, como o farol que deveria esclarecer a Humanidade no caminho que tinha a percorrer. Foi Moisés que abriu o caminho; Jesus continuou a obra; o Espiritismo a terminará...”

No mesmo ano de 1861, no mês de junho a Revista Espírita vai trazer em sua sessão “Correspondência” uma carta do Sr. Jean Baptiste Roustaing, advogado da corte imperial de Bordeaux, onde esse nosso conhecido personagem vai discorrer sobre seus trabalhos na sua cidade natal e das alegrias que sente ao tomar contato com os conceitos espíritas, que naquele momento, eram difundidos por Allan Kardec através da Revista Espírita. Roustaing fala principalmente sobre as descobertas no campo da mediunidade e reencarnação. Em um dos trechos desta carta ele diz:

“...Agradeço com alegria e humildade esses divinos mensageiros por terem vindo nos ensinar que o Cristo está em missão sobre a Terra, para a propagação e o sucesso do Espiritismo, essa terceira explosão da bondade divina, para cumprir esta palavra final do Evangelho: "Unum ovile et unus pastor? por terem vindo nos dizer: "Não temais nada! O Cristo (chamado por eles Espírito de Verdade), a Verdade é o primeiro e o mais santo missionário das ideias espíritas...”

Continuando ainda no ano de 1861, na edição de setembro da Revista Espírita, o mesmo médium Sr. Rodolfo vai trazer mais uma carta dessa vez de um outro parente seu, também israelita, desencarnado de nome Edouard Pereyre e que é intitulada: “Um Espírito israelita aos seus correligionários”, da qual destacamos os seguintes trechos: “...O Espiritismo é o acontecimento de uma era que verá se realizar essa revolução nas ideias dos povos; porque o Espiritismo destruirá essas prevenções incompreendidas, esses preconceitos sem causas que acompanharam e seguiram os Judeus em sua longa e penosa peregrinação...”

E continua dizendo: “...Sim, o Espiritismo é a terceira revelação; revela-se a uma geração de homens mais avançados, tendo mais nobres aspirações, aspirações generosas e humanitárias, que devem concorrer para a fraternidade universal...”

Nota-se até aqui, que esse conceito estava sendo apresentado a Kardec por dois Espíritos e um médium, todos pertencentes a mesma família israelita. A carta do Sr.

Roustaing não era uma psicografia e o mesmo não cita propriamente o termo “Terceira

Revelação”, mas traz um conteúdo com uma ideia semelhante num determinado trecho de sua missiva. E nos parece que Kardec maturou essa ideia, pois vai apresentá-la na publicação de “O Evangelho Segundo Espiritismo”, que foi lançado no ano de 1864, logo no capítulo I, intitulado “Não vim destruir a Lei”, de onde retiramos o seguinte trecho:

“...A lei do Antigo Testamento teve em Moisés a sua personificação; a do Novo Testamento tem-na no Cristo. O Espiritismo é a terceira revelação da lei de Deus, mas não tem a personificá-la nenhuma individualidade, porque é fruto do ensino dado, não por um homem, sim pelos Espíritos, que são as vozes do Céu, em todos os pontos da Terra, com o concurso de uma multidão inumerável de intermediários...”

Por todo esse capítulo I de “O Evangelho Segundo Espiritismo”, encontramos diversos trechos que remetem as cartas dos Espíritos israelitas que foram apresentadas a Kardec em 1861 e podemos perceber a construção da ideia de revelações ao longo dos períodos, principalmente na história do povo judeu, e como essa ideia é cativante no sentido de unificação das culturas, bem como o fim do conflito entre religiões. O conceito de que as revelações são apresentadas para um povo escolhido e evoluído, aparecem na mensagem do Espírito israelita, colocando em particular os hebreus como privilegiados nesse processo. Não podemos nos esquecer o contexto histórico e cultural em que se encontrava a Europa e a França naquele momento, onde também se consideravam um povo evoluído, em que sua cultura era superior aos dos outros povos que eles mantinham como colônias. Essa era a visão eurocêntrica que predominava em toda Europa de meados do séc. XIX, e que formava o caldo sociocultural onde vivia Allan Kardec.

Vamos ainda encontrar dentro das obras da codificação outras citações sobre o tema como por exemplo nas Revistas Espíritas de setembro/1867, quando Kardec vai trazer

o artigo intitulado: “Caracteres da Revelação Espírita”, e que mais tarde ele desenvolve na obra “A Gênese” o mesmo artigo no capítulo I. Uma outra citação sobre a “Terceira

Revelação”, vai ocorrer no periódico de março/1868 da Revista Espírita sob o título:

“Correspondência inédita de Lavater com a Imperatriz Maria da Rússia”, de onde extraímos o seguinte trecho:

“...Aproveito esta ocasião, senhor, para vos exprimir os sentimentos de minha profunda e perfeita estima, partilhada pelos Espíritas sinceros de todos os países, que sabem dignamente apreciar os serviços eminentes que vosso zelo infatigável prestou ao desenvolvimento científico e à propagação da sublime e tão consoladora Doutrina Espírita. Esta terceira revelação terá por consequência a regeneração, o progresso moral e a consolidação da fé na pobre Humanidade, infelizmente extraviada, e que flutua entre a dúvida e a indiferença, em matéria de religião e de moral...”

Podemos perceber que a ideia de “Terceira Revelação”, apresentada e adotada por Kardec em “O Evangelho Segundo Espiritismo”, vai ser desenvolvida e aprimorada, sendo publicada na quinta e última obra da codificação “A Gênese”. Cabe-nos aqui contextualizar sobre esse conceito, não restando-nos dúvidas que o Espiritismo se apresenta mesmo como uma revelação no que se refere a sua parte filosófica e científica pois suas ideias trazem novos modos de pensar os conceitos da morte, da sobrevivência da alma, da relação dos desencarnados com o plano físico, da vida futura, além de também trazer a metodologia experimental no trato com as comunicações mediúnicas.

Quando, porém, falamos de uma revelação divina, ou no aspecto religioso, não podemos perder de vista o contexto cultural e os limites geográficos, que colocavam a sociedade europeia de então, como integrante de um conjunto de crenças que podemos classificar como judaico-cristãs. Nesse contexto, seria extremamente danoso nos esquecermos que todo o mundo oriental com suas culturas, crenças, políticas e sociedades, não estava presente nas discussões e debates europeus. E reafirmando o que dissemos no início dessas reflexões, esse mundo oriental possui uma população de fiéis e de pessoas bem maior do que o mundo ocidental, ao qual estamos nos referindo. Portanto seria no mínimo imprudente colocarmos o Espiritismo como uma religião superior ou acima de tantas outras que existem há muito mais tempo. Necessário se faz que entendamos o contexto histórico-cultural em que Allan Kardec trouxe esse conceito, para não cairmos no erro de adotarmos uma pretensa superioridade sobre tantas outras tradições e crenças existentes no mundo.

Para uma compreensão honesta sobre essa temática bem como com o próprio Allan Kardec, nós temos que praticar a decolonialidade tão necessária quando se trata de contextos anacrônicos, sejam eles dentro do Espiritismo ou fora dele. Não podemos e não devemos ser arrogantes ao afirmar que o Espiritismo é a Terceira Revelação ou o Consolador Prometido, enviado por Deus aos homens, se queremos buscar a aproximação da Doutrina Espírita com outras correntes do pensamento humano.

 

Referências:

 (*) https://abrade.com.br/quantos-sao-os-espiritas-no-brasil-e-no-mundo/

 

(**) https://dicionario.priberam.org/revelação

 

(***) https://www.pewresearch.org/topic/religion/religious-demographics/

 

Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudo Psicológicos - mar/1861 – Instituto de Difusão Espírita 1993.

Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudo Psicológicos - jun/1861 – Instituto de Difusão Espírita 1993.

Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudo Psicológicos - set/1861 – Instituto de Difusão Espírita 1993.

Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudo Psicológicos - set/1867 – Instituto de Difusão Espírita 1999.

Kardec, Allan. Revista Espírita – Jornal de Estudo Psicológicos - mar/1868 – Instituto de Difusão Espírita 2000.

Kardec, Allan. Revista Espírita – O Evangelho Segundo Espiritismo - abr/1864 – Federação Espírita Brasileira 2002.

Kardec, Allan. Revista Espírita – A Gênese – ed. 1868 – Trad. Carlos de Brito Imbassahy


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