Asas de borboleta
“Era apenas uma menina que pensava que um dia criaria asas como a borboleta e voaria.
Corria, pulava, sorria ... como sorria.
Acreditava que o mundo era só alegria acreditava que a maldade não existia.
Via em cada gesto apenas simpatia. Olhares ruins, pessoas que ameaçavam a inocência eram só fantasia.
Até que um dia descobriu, de uma só vez, que a dor e angústia eram mais que notícias de televisão e em sua vida tudo mudou.
O céu mudara de cor, já não via mais o seu azul radiante, mas o cinza
sem brilho e calor.
A dor da lembrança doía, o corpo doía. Pensava se aquilo seria mentira, mas a verdade lhe dizia: - Aconteceu...
A sensação
de estar suja lhe acompanhava noite e dia.:
Ele não deveria...Invadir assim a
sua inocência... Como um simples brinquedo. Ousar fazer da menina uma boneca dilacerada.
Não conseguia mais sorrir ou
cantar. Toda a sua alegria transformada em tristeza
profunda. Lembrava das frases:
- Não conte, não conte. Este é o nosso segredinho. Se você contar
eu negarei e não acreditarão
em você. Muitas coisas ruins vão acontecer.
Passou a andar cabisbaixa, se isolava; se alguém lhe abordava saia.
Não se entrosava
e sofria. A dor machucava e ela sozinha.
Muitos perguntavam o que havia, mas
ela mesma não entendia, apenas lembrava e sofria.
Não dormia, sonhava com os momentos
passados. Acordava em prantos e ninguém
entendia. Tinha medo, muito medo.
Recordava aquelas mãos invadindo
mais que seu corpo,
o seu eu. Afeto e raiva se misturavam. Já não sabia o que sentir por alguém que um dia amou e fora capaz de
violentar sua alma.
Quando estava
só pensava, pensava... Lembrava. Um dia contou, mas não
acreditaram; essa dor foi mais forte, quase sucumbiu. Não vivia, sobrevivia.
À escola ia sem ver o que se
passava, como alguém cuja vida escapava pelas lembranças e pela dor.
Um
dia, porém, alguém
a viu, não com os olhos que se vê todos os dias, mas com os olhos de quem enxerga além.
Quem lhe enxergou também acreditou na força do abraço e abraçou.
Aquele
abraço tocou fundo e ela falou. Dessa vez foi diferente, a verdade
apareceu. Ela que pensava que estava sozinha
descobriu que há outros
marcados pelo sofrimento como o seu, todos com a marca da dor.
Ela
descobre ainda que as marcas ficam, mas, a vida, ah! A vida pode recomeçar. Poderia até abrir as asas da
esperança e reaprender a voar.”
*Valéria Amâncio.
O texto acima, escrito pela Psicóloga e Pedagoga Valéria Amâncio nos remete ao Maio Laranja e a importância de falar sobre o tema “Abuso sexual contra crianças e adolescentes: a violência silenciosa”. Tema que, inclusive, a Psicóloga Valéria Amâncio abordou em live realizada no dia 25.05 deste ano como convidada do Fórum de Mulheres Espíritas do IFEHP - Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires, vídeo disponível no canal do youtube do IFEHP.
O dia 18 de maio de 1973 marcou para sempre a vida da família da menina Araceli. Ela tinha 08 anos quando foi
raptada, drogada, estuprada, carbonizada
e morta, em Vitória do Espírito Santo. Araceli poderia ser a menina do texto de Valéria Amâncio que
pensava que um dia criaria asas como
a borboleta e voaria. Araceli se foi, vítima de um crime brutal e o dia 18 de maio foi instituído como o dia
Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual
de Crianças e Adolescentes.
Quantas crianças e jovens sofreram
e sofrem abusos e exploração sexual em nosso país?
A violência sexual é um crime que acontece prioritariamente na infância e no início da adolescência.
No período entre 2017 e 2020 foram registrados
179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos – uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10
anos representam 62 mil das vítimas nesses quatro anos – ou seja, um terço do total. A grande maioria das
vítimas de violência sexual é menina – quase
80%. Para elas, um número muito alto de casos envolve vítimas entre 10 e 14 anos de idade, sendo 13 anos a
idade mais frequente. Para os meninos, o crime se concentra
na infância, especialmente entre 3
e 9
anos de idade. A maioria dos
casos de violência sexual contra meninas e meninos ocorre na residência da vítima e, para os casos em que há
informações sobre a autoria dos
crimes, 86% dos autores eram conhecidos. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública
(FBSP) em relatório de 2021.
As estatísticas apontam os números de crianças e adolescentes abusados, violentados de forma silenciosa. Mas,
pessoas não são números, são seres que
sofrem as dores do abuso e da violência, na grande maioria das vezes realizada no âmbito da família e por
pessoas de sua relação de afeto e confiança.
A dor dessas crianças e adolescentes só não é maior que a dor do descrédito que faz com que muitas das
pessoas sobreviventes venham a sucumbir.
A dor de uma voz, quando consegue sair da boca, não ser ouvida e respeitada.
As vozes que repetem “Quem ensina sobre sexo é papai e mamãe”. “Falar sobre
questão de gênero é
doutrinação.” Essas trazem
um mal maior.
Frases como estas tem se disseminado nas redes sociais, mas, não encontram respaldos em estudos e pesquisas e jogam contra o combate à exploração sexual infantil, aponta o Relatório elaborado pela Revista Britânica The Economist com apoio da Fundação World Childhood: a discussão sobre sexualidade e gênero aumenta a capacidade de um país de proteger suas crianças.
O Brasil
vinha avançando, mesmo
que devagar, e a maioria
dos pais concordava com a educação
sexual nas escolas,
mas agora com essa desinformação sobre os Programas
parece que a coisa estagnou, diz a psicóloga e doutora em educação
Neide Figueiró que trabalha com formação em educação sexual para professores. Discursos sem fundamentos
incutem nos pais o medo de que a escola incentivaria crianças a fazer
sexo, faria apologia
da homossexualidade ou pregaria valores contra princípios
religiosos de algumas famílias. Mesmo assim a maioria
dos brasileiros ainda
é a favor da educação
sexual nas escolas,
apoiada por 54% da população segundo pesquisa do Datafolha de dezembro 2018.
O
retrocesso diminui as chances de a escola identificar casos de abuso e exploração. Se o tema deixa de ser tratado
nas escolas, há redução da percepção
dos professores sobre o que está acontecendo. Os discursos enviesados afetam também os professores que ficam com medo de tratar do assunto, segundo a especialista Figueiró.
Nós precisamos conhecer quais os tipos de violência silenciosa que sofrem as crianças
e adolescentes. De que maneira o abuso acontece e quem são os possíveis abusadores ou abusadoras. Estão
próximos? Há um perfil dessas pessoas?
Como identificar se a criança ou adolescente está sendo vítima
de abuso? Elas podem
mentir em caso de abuso? Por que a criança e adolescente não fala ou pede
ajuda quando está sendo vítima
de abuso?
O
que fazer em caso de desconfiar que uma criança ou adolescente está sofrendo
abuso? Existem Redes de apoio
para essas crianças
e adolescentes?
É
preciso pautar esse debate, nos meios espíritas e na sociedade em geral. Despertar
a força coletiva
no sentido de causar um desconforto social,
para, assim, fomentar a
elaboração de políticas públicas eficazes de prevenção. É preciso preparar pessoas para agir diante
deste cenário cruel, criminoso, sombrio: famílias, escolas, grupos
sociais diversos.
Educação sexual,
conhecer o corpo, as descobertas, os sentimentos e sensações, preparar
as crianças e adolescentes para a auto-defesa.
Estatísticas mostram que crianças que passaram por programas de educação sexual formal e planejada têm seis vezes mais ferramentas de proteção contra abuso e exploração sexual, afirma Caroline Arcari, mestre em Educação Sexual e autora do livro Pipo e Fifi sobre prevenção de violência sexual destinado às crianças a partir dos 4 anos. Segundo ela, alguns grupos argumentam que a educação sexual poderia erotizar precocemente a criança. Há uma confusão sobre o que ela trata: é aprender sobre o corpo, sobre os seus sentimentos, sobre o mundo, sobre limites e seus direitos, diz ela.
Ah, as estatísticas. Elas teimam em nos enquadrar
em um padrão de ocorrência que não somos, entretanto, são
subsídios para as leituras das pesquisas e estudos produzidos que auxiliam a guiar a construção de políticas públicas e redes de apoio, e,
principalmente, o enfrentamento às violências
cometidas. A partir do conhecimento do cenário que as estatísticas nos apontam ações como as de 18MAIO último
ganham força e mais pessoas se somam a essa luta:
ativistas de todo o país convocaram grito coletivo para dar basta à violência sexual contra crianças. São participantes da passeata virtual
#AgoraVcSabe, Movimento encabeçado pelo Instituto Liberta,
presidido por Luciana Temer. O Movimento tem como
missão, por um fim ao silêncio sobre violência sexual
contra crianças e
adolescentes no país,
diz ela.
São muitas as denúncias que surgem quase que diariamente e quem denuncia termina sendo uma referência, um apoio e um incentivo para que mais crianças e adolescentes falem, rompam o silêncio, como a menina do texto de Valéria Amâncio, que, pensando que estava sozinha descobriu que há outros marcados pelo sofrimento como o seu, todos com a marca da dor.
Descobriu ainda que as
marcas ficam, mas, a
vida pode recomeçar.
“Poderia até abrir as asas da esperança e reaprender a voar...”
Que sejamos cada uma e cada um de nós o abraço que acolhe, o ouvido que escuta e a voz que brada em coro: BASTA! Chega do abuso que mata lentamente...
Neste
contexto, o Fórum de Mulheres Espíritas do IFEHP soma-se a tantos outros ativistas, Coletivos, grupos
sociais, famílias, educadores, imbuídos da
responsabilidade de pautar
esse tema, promovendo todos os diálogos
e ações necessárias ao enfrentamento dessa violência.
Nunca
será demais pautar o tema do abuso sexual e dialogar com as pessoas sobre essa violência silenciosa que nos
atinge. É uma questão de interesse público. É uma responsabilidade coletiva.
Precisamos dar um BASTA a essa violência silenciosa!
FONTE:
AMÂNCIO, Valéria. Meu Corpo, Minhas Descobertas. 2012. Editora cassara.
https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/05/13/menina-que- escreveu-bilhete-relatando-abuso-sexual-em-sc-sofria-violencia-desde-o- inicio-do-ano-me-ajuda.ghtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=share- bar-mobile&utm_campaign=materias
https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2019/05/discussao-sobre- sexo-na-escola-aumenta-protecao-contra- abuso.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=co mpwa
https://instagram.com/stories/valamanciosantos/2834354864628068561? utm_source=ig_story_item_share&igshid=MDJmNzVkMjY=
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