sábado, 28 de maio de 2022

Abuso sexual contra crianças e adolescentes: a violência silenciosa - por Alessandra Buarque

 


por Alessandra Buarque, Integrante do Fórum de Mulheres Espíritas do IFEHP Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires. @forummulheresifehp @ifehpherculanopires

Asas de borboleta

 “Era apenas uma menina que pensava que um dia criaria asas como a borboleta e voaria.

Corria, pulava, sorria ... como sorria.

Acreditava que o mundo era só alegria acreditava que a maldade não existia.

Via em cada gesto apenas simpatia. Olhares ruins, pessoas que ameaçavam a inocência eram fantasia.

Até que um dia descobriu, de uma só vez, que a dor e angústia eram mais que notícias de televisão e em sua vida tudo mudou.

O céu mudara de cor, já não via mais o seu azul radiante, mas o cinza sem brilho e calor.

A dor da lembrança doía, o corpo doía. Pensava se aquilo seria mentira, mas a verdade lhe dizia: - Aconteceu...

A sensação de estar suja lhe acompanhava noite e dia.:

Ele não deveria...Invadir assim a sua inocência... Como um simples brinquedo. Ousar fazer da menina uma boneca dilacerada.

Não conseguia mais sorrir ou cantar. Toda a sua alegria transformada em tristeza profunda. Lembrava das frases:

- Não conte, não conte. Este é o nosso segredinho. Se você contar eu negarei e não acreditarão em você. Muitas coisas ruins vão acontecer. Passou a andar cabisbaixa, se isolava; se alguém lhe abordava saia.

Não se entrosava e sofria. A dor machucava e ela sozinha.

Muitos perguntavam o que havia, mas ela mesma não entendia, apenas lembrava e sofria.

Não dormia, sonhava com os momentos passados. Acordava em prantos e ninguém entendia. Tinha medo, muito medo.

Recordava aquelas mãos invadindo mais que seu corpo, o seu eu. Afeto e raiva se misturavam. não sabia o que sentir por alguém que um dia amou e fora capaz de violentar sua alma.

Quando estava pensava, pensava... Lembrava. Um dia contou, mas não acreditaram; essa dor foi mais forte, quase sucumbiu. Não vivia, sobrevivia.

À escola ia sem ver o que se passava, como alguém cuja vida escapava pelas lembranças e pela dor.

Um dia, porém, alguém a viu, não com os olhos que se todos os dias, mas com os olhos de quem enxerga além. Quem lhe enxergou também acreditou na força do abraço e abraçou.

Aquele abraço tocou fundo e ela falou. Dessa vez foi diferente, a verdade apareceu. Ela que pensava que estava sozinha descobriu que outros marcados pelo sofrimento como o seu, todos com a marca da dor.

Ela descobre ainda que as marcas ficam, mas, a vida, ah! A vida pode recomeçar. Poderia até abrir as asas da esperança e reaprender a voar.”

*Valéria Amâncio.

O texto acima, escrito pela Psicóloga e Pedagoga Valéria Amâncio nos remete ao Maio Laranja e a importância de falar sobre o tema “Abuso sexual contra crianças e adolescentes: a violência silenciosa”. Tema que, inclusive, a Psicóloga Valéria Amâncio abordou em live realizada no dia 25.05 deste ano como convidada do Fórum de Mulheres Espíritas do IFEHP - Instituto de Filosofia Espírita Herculano Pires, vídeo disponível no canal do youtube do IFEHP.

O dia 18 de maio de 1973 marcou para sempre a vida da família da menina Araceli. Ela tinha 08 anos quando foi raptada, drogada, estuprada, carbonizada e morta, em Vitória do Espírito Santo. Araceli poderia ser a menina do texto de Valéria Amâncio que pensava que um dia criaria asas como a borboleta e voaria. Araceli se foi, vítima de um crime brutal e o dia 18 de maio foi instituído como o dia Nacional de Combate ao Abuso e à Exploração Sexual de Crianças e Adolescentes.

Quantas crianças e jovens sofreram e sofrem abusos e exploração sexual em nosso país? A violência sexual é um crime que acontece prioritariamente na infância e no início da adolescência. No período entre 2017 e 2020 foram registrados 179.277 casos de estupro ou estupro de vulnerável com vítimas de até 19 anos uma média de quase 45 mil casos por ano. Crianças de até 10 anos representam 62 mil das vítimas nesses quatro anos – ou seja, um terço do total. A grande maioria das vítimas de violência sexual é menina – quase 80%. Para elas, um número muito alto de casos envolve vítimas entre 10 e 14 anos de idade, sendo 13 anos a idade mais frequente. Para os meninos, o crime se concentra na infância, especialmente entre 3 e 9 anos de idade. A maioria dos casos de violência sexual contra meninas e meninos ocorre na residência da vítima e, para os casos em que há informações sobre a autoria dos crimes, 86% dos autores eram conhecidos. Os dados são do Fórum Brasileiro de Segurança Pública (FBSP) em relatório de 2021.

As estatísticas apontam os números de crianças e adolescentes abusados, violentados de forma silenciosa. Mas, pessoas não são números, são seres que sofrem as dores do abuso e da violência, na grande maioria das vezes realizada no âmbito da família e por pessoas de sua relação de afeto e confiança. A dor dessas crianças e adolescentes só não é maior que a dor do descrédito que faz com que muitas das pessoas sobreviventes venham a sucumbir. A dor de uma voz, quando consegue sair da boca, não ser ouvida e respeitada.

As vozes que repetem “Quem ensina sobre sexo é papai e mamãe”. “Falar sobre questão de gênero é doutrinação.” Essas trazem um mal maior.

Frases como estas tem se disseminado nas redes sociais, mas, não encontram respaldos em estudos e pesquisas e jogam contra o combate à exploração sexual infantil, aponta o Relatório elaborado pela Revista Britânica The Economist com apoio da Fundação World Childhood: a discussão sobre sexualidade e gênero aumenta a capacidade de um país de proteger suas crianças.

O Brasil vinha avançando, mesmo que devagar, e a maioria dos pais concordava com a educação sexual nas escolas, mas agora com essa desinformação sobre os Programas parece que a coisa estagnou, diz a psicóloga e doutora em educação Neide Figueiró que trabalha com formação em educação sexual para professores. Discursos sem fundamentos incutem nos pais o medo de que a escola incentivaria crianças a fazer sexo, faria apologia da homossexualidade ou pregaria valores contra princípios religiosos de algumas famílias. Mesmo assim a maioria dos brasileiros ainda é a favor da educação sexual nas escolas, apoiada por 54% da população segundo pesquisa do Datafolha de dezembro 2018.

O retrocesso diminui as chances de a escola identificar casos de abuso e exploração. Se o tema deixa de ser tratado nas escolas, há redução da percepção dos professores sobre o que está acontecendo. Os discursos enviesados afetam também os professores que ficam com medo de tratar do assunto, segundo a especialista Figueiró.

Nós precisamos conhecer quais os tipos de violência silenciosa que sofrem as crianças e adolescentes. De que maneira o abuso acontece e quem são os possíveis abusadores ou abusadoras. Estão próximos? Há um perfil dessas pessoas?

Como identificar se a criança ou adolescente está sendo vítima de abuso? Elas podem mentir em caso de abuso? Por que a criança e adolescente não fala ou pede ajuda quando está sendo vítima de abuso?

O que fazer em caso de desconfiar que uma criança ou adolescente está sofrendo abuso? Existem Redes de apoio para essas crianças e adolescentes?

É preciso pautar esse debate, nos meios espíritas e na sociedade em geral. Despertar a força coletiva no sentido de causar um desconforto social, para, assim, fomentar a elaboração de políticas públicas eficazes de prevenção. É preciso preparar pessoas para agir diante deste cenário cruel, criminoso, sombrio: famílias, escolas, grupos sociais diversos.

Educação sexual, conhecer o corpo, as descobertas, os sentimentos e sensações, preparar as crianças e adolescentes para a auto-defesa.

Estatísticas mostram que crianças que passaram por programas de educação sexual formal e planejada têm seis vezes mais ferramentas de proteção contra abuso e exploração sexual, afirma Caroline Arcari, mestre em Educação Sexual e autora do livro Pipo e Fifi sobre prevenção de violência sexual destinado às crianças a partir dos 4 anos. Segundo ela, alguns grupos argumentam que a educação sexual poderia erotizar precocemente a criança. Há uma confusão sobre o que ela trata: é aprender sobre o corpo, sobre os seus sentimentos, sobre o mundo, sobre limites e seus direitos, diz ela.

Ah, as estatísticas. Elas teimam em nos enquadrar em um padrão de ocorrência que não somos, entretanto, são subsídios para as leituras das pesquisas e estudos produzidos que auxiliam a guiar a construção de políticas públicas e redes de apoio, e, principalmente, o enfrentamento às violências cometidas. A partir do conhecimento do cenário que as estatísticas nos apontam ações como as de 18MAIO último ganham força e mais pessoas se somam a essa luta: ativistas de todo o país convocaram grito coletivo para dar basta à violência sexual contra crianças. São participantes da passeata virtual #AgoraVcSabe, Movimento encabeçado pelo Instituto Liberta, presidido por Luciana Temer. O Movimento tem como missão, por um fim ao silêncio sobre violência sexual contra crianças e adolescentes no país, diz ela.

 

São muitas as denúncias que surgem quase que diariamente e quem denuncia termina sendo uma referência, um apoio e um incentivo para que mais crianças e adolescentes falem, rompam o silêncio, como a menina do texto de Valéria Amâncio, que, pensando que estava sozinha descobriu que outros marcados pelo sofrimento como o seu, todos com a marca da dor.

Descobriu ainda que as marcas ficam, mas, a vida pode recomeçar.

“Poderia até abrir as asas da esperança e reaprender a voar...”

 Que sejamos cada uma e cada um de nós o abraço que acolhe, o ouvido que escuta e a voz que brada em coro: BASTA! Chega do abuso que mata lentamente...

 

Neste contexto, o Fórum de Mulheres Espíritas do IFEHP soma-se a tantos outros ativistas, Coletivos, grupos sociais, famílias, educadores, imbuídos da responsabilidade de pautar esse tema, promovendo todos os diálogos e ações necessárias ao enfrentamento dessa violência.


Nunca será demais pautar o tema do abuso sexual e dialogar com as pessoas sobre essa violência silenciosa que nos atinge. É uma questão de interesse público. É uma responsabilidade coletiva.

  Precisamos dar um BASTA a essa violência silenciosa!

 FONTE: 

AMÂNCIO, Valéria. Meu Corpo, Minhas Descobertas. 2012. Editora cassara.

https://g1.globo.com/sc/santa-catarina/noticia/2022/05/13/menina-que- escreveu-bilhete-relatando-abuso-sexual-em-sc-sofria-violencia-desde-o- inicio-do-ano-me-ajuda.ghtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=share- bar-mobile&utm_campaign=materias

https://www1.folha.uol.com.br/seminariosfolha/2019/05/discussao-sobre- sexo-na-escola-aumenta-protecao-contra- abuso.shtml?utm_source=whatsapp&utm_medium=social&utm_campaign=co mpwa

https://instagram.com/stories/valamanciosantos/2834354864628068561? utm_source=ig_story_item_share&igshid=MDJmNzVkMjY=



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